Recentemente, o empresário e apresentador de TV Luciano Huck colocou o dedo na ferida da tão mal resolvida questão habitacional no Brasil.
Qualquer ser humano medianamente consciente não tem como pensar em ser feliz enquanto milhões de pessoas se espremem em favelas e cortiços, em vãos de viadutos e, com sorte, se abrigam sob marquises.
País algum se pode definir como nação enquanto situações desumanas como estas estiverem à vista de todos nós. E preocupa saber que muita gente nem mais presta atenção. É drama que se incorporou à paisagem. Um drama que só é sofrido por aqueles que tentam sobreviver em meio a condições abomináveis, sem proteção, conforto ou privacidade, com tios abusando de sobrinhas ou sobrinhos; sem saneamento ou água encanada; com ‘gatos’ em fiações iluminando suas “casas”; com permanente risco de incêndio.
Sempre defendemos que só a moradia digna proporciona a dignidade que toda família merece. Há mais de sete décadas fazemos isso. Mas, por sermos incorporadores, tivemos e continuamos tendo grandes dificuldades em ser ouvidos.
A opinião pública nem imagina que o maior programa habitacional do mundo, o Minha Casa, Minha Vida, nasceu por sugestão nossa para atender à maior demanda do País: cidadãos com renda de zero a 10 salários mínimos. É aí que mora o déficit habitacional de mais de 7 milhões de unidades. Um déficit que seria muito maior se o MCMV não tivesse já entregue mais de 4 milhões moradias. Moradias construídas pelo setor privado, e que respondem por quase 50% do mercado imobiliário da capital paulista. Estranho paradoxo: o ‘especulador’ fazendo casa para pobres…
Em tempos de pandemia, a situação das favelas despertou maior atenção. Um verdadeiro caldeirão de Covid-19 prestes a explodir, ameaçando a vida de seus moradores. Uma explosão impossível de conter, pois os habitantes dessas comunidades precisam comer.
Este é apenas um retrato do momento. Pois, nessas localidades, sempre houve muitos sofrimentos e poucos ouvidos para escutá-los. Passada a pandemia, as chances de tudo voltar ao velho normal são nada remotas.
A questão é que jamais conseguiremos alcançar a cura se não erradicarmos a causa. E esta remonta anos e anos atrás. Um ‘vírus’ produzido em gabinetes de governos, políticos e acadêmicos que optaram por dar as costas ao inevitável crescimento populacional das metrópoles e imaginaram que as áreas centrais poderiam continuar pertencendo a privilegiados comodamente abrigados em suas residências unifamiliares. Entenderam, ainda, que era preciso resguardar as zonas de mananciais, beira de rios, represas, transformadas em áreas de preservação permanente. E isso, bem sabemos, ficou só no papel. Basta sobrevoar as represas Billings e Guarapiranga em São Paulo. As empresas de desenvolvimento urbano foram proibidas de lá implantarem empreendimentos populares sustentáveis. Com saneamento básico, ruas, calçamento, iluminação, coleta de lixo (que hoje certamente seria reciclado no próprio loteamento).
A lei impediu a atividade formal de atuar, mas foi incapaz de conter as invasões por famílias que não tinham opção. Assim como aquelas que subiram os morros, instalando barracos em áreas de risco.
Certa vez trouxemos de Singapura um modelo habitacional inovador: em troca de mais andares em seus empreendimentos, as empresas construiriam habitações populares para a população favelada, não em áreas distantes, mas no mesmo local onde moravam. Nasceu assim o Projeto Cingapura, que ofertou milhares de unidade. Porém, não vingou por dois motivos: poucos governantes gostam de dar continuidade ao que foi realizado por seus antecessores; os moradores das comunidades que seriam realojados eram devidamente cadastrados, mas, no dia seguinte à notícia de que teriam sua habitação, a população duplicava. E mais: o terreno desocupado para dar lugar a um novo empreendimento era invadido instantaneamente.
Existem indústrias de invasões, muitas delas comandadas por facções criminosas. O valor do aluguel seria suficiente para pagar uma prestação no MCMV. Há cortiços cobrando R$ 800 reais/mês. Mas as pessoas permanecem. Por medo e, principalmente, por ter o nome sujo na praça, obstáculo intransponível para se conseguir um financiamento imobiliário.
Nossa legislação urbana também proibiu, e agora restringiu ainda mais, o potencial do uso do solo. Enquanto cidades como Nova York ou Xangai permitem usar 20 ou mesmo 50 vezes a área do terreno, com edifícios de 100 ou mais andares (Dubai está construindo um prédio com 1 km de altura), em São Paulo, maior metrópole do hemisfério sul, temos o limite de duas vezes a área do terreno. E quem quiser fazer quatro vezes, paga outorga onerosa.
Quanto menor o número de unidades em determinada área, mais caras elas são. Quanto maior a outorga onerosa também. Tornam-se inacessíveis à população de baixa renda, cada vez mais empurrada para as franjas da cidade e penalizada com horas e horas perdidas no transporte público.
Houve uma alternativa boa: permitir edifícios mais altos nos Eixos de Estruturação Urbana, ou seja, onde há transporte de massa. Unidades compactas, com poucas garagens e preços adequados à baixa renda. Resultado: diversos edifícios padronizados, com tipologias idênticas e, detalhe, ocupados por famílias de média renda. A população que se pretendeu atender continua desatendida. E os miolos de bairros, onde a classe média poderia morar, só admitem prédios de oito andares, ou seja, unidades caríssimas.
Além das restrições urbanísticas e dos comandos facciosos, existem ainda todos aqueles gargalos apontados por Huck: burocracia exagerada, licenciamentos vagarosos (especialmente o ambiental) e, para resumir, imensa insegurança jurídica e afronta ao constitucional direito de propriedade.
Não é por falta de propostas que a cidade de São Paulo não é melhor, mais amigável e inclusiva. O Secovi-SP já apresentou várias. Quantas vezes não se ouviu falar em Operação Urbana Centro, para requalificar uma região dotada de ampla infraestrutura e repleta de prédios vazios que, com retrofit, serviriam de moradia a famílias de menor renda? Alguma coisa aconteceu? Nada! Empresários que acreditaram construíram na região e foram bem-sucedidos nas vendas. Mas a zeladoria prometida nunca apareceu.
É o próprio mercado imobiliário que vem resgatando áreas deterioradas. O Baixo Augusta é um caso clássico. Essas regiões precisam ser habitadas. E são os moradores que transformam o ambiente.
Aliás, há um grande número de mansões abandonadas em importantes avenidas da Capital. Por que não transformá-las em unidades multifamiliares? Predinhos, vilas…
Cidades compactas, novas centralidades, utilização da linha da malha ferroviária para edificações de diferentes usos, com bulevares e áreas de convivência, tudo isso já apresentamos ao poder público, com projetos assinados por arquitetos do quilate de Jaime Lerner.
Regularização fundiária? Propusemos, defendemos, conseguimos aprovar. Locação social levamos sugestões, pois aluguel também é habitação digna. Urbanização de favelas? Perdemos a conta do número de tentativas.
Para completar, o mercado imobiliário enfrenta a especulação imobiliária gananciosa dos proprietários de terrenos (cada vez mais raros e caros) e a ira dos NIMBYs (not in my backyard), que não aceitam democratizar o espaço urbano, obtêm liminares e embargam empreendimentos legalmente aprovados.
Portanto, a cura para o inaceitável problema das favelas em São Paulo e outras metrópoles realmente enseja “pensar grande” e realizar “um plano maior”. Mas o remédio para as causas desse mal, melhor dizendo, a vacina definitiva, depende da adoção de uma mentalidade contemporânea nos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e na academia, do efetivo combate ao crime organizado e fazer parcela da opinião pública entender que a cidade é um direito de todos.
Basilio Jafet é presidente do Secovi-SP, o Sindicato da Habitação, e reitor da Universidade Secovi