Basilio Jafet é presidente do Secovi-SP

Nunca se falou tanto esta palavra. Casa. Fique em casa. Aproveite para renovar e adaptar sua casa para bem conviver e viver. Educar e brincar com os filhos. Ressignificar a família. Acolher os pais. Trabalhar. Ler um bom livro. Organizar álbuns de retratos. Dialogar consigo mesmo.

A casa passou a ser o centro de tudo, coisa que o corre-corre cotidiano havia eclipsado um pouco. A rua convidava. Viver era sair. Então a pandemia nos obrigou a permanecer em casa.

A maioria das pessoas atendeu a esse comando. Tanto que muito do atual aprendizado poderá tornar-se perene. Caso do home office.

Ele não eliminará os escritórios, como exageradamente se propala, mas por certo vai perdurar em muitas áreas de trabalho, com idas menos frequentes às organizações. Aliás, nessas idas, essenciais, se afirmam as culturas corporativas, forjadas na convivência entre pessoas.

Se a importância da casa está hoje ainda mais consagrada, por que, então, tantos obstáculos à sua produção e preconceitos por quem as produz?

Comecemos pela legislação urbanística, usando como exemplo a cidade de São Paulo. Décadas atrás os legisladores inibiram os loteamentos por meio de exigências e normas restritivas. Quem tinha área para fazer lotes de maneira formal pouco pôde empreender. Mas os terrenos não demoraram a ser invadidos, ocupados clandestinamente. O resultado está aí: milhares de famílias morando em condição irregular em áreas de preservação ambiental ou de manancial. Onde esgoto e coleta de lixo não existem ou são insuficientes. Onde, dada a irreversibilidade do quadro, o poder público termina por conceder anistias (a única forma de regularizar as moradias), ainda que isso não se faça acompanhar da necessária infraestrutura. Ela custa caro. Um preço que os loteadores formais sempre pagaram.

Se a importância da casa está hoje ainda mais consagrada, por que, então, tantos obstáculos à sua produção e preconceitos por quem as produz?

Nas últimas décadas os planos diretores estratégicos, de onde emanam as diretrizes do desenvolvimento urbano das cidades, assumindo que não haveria expansão populacional, empenharam-se em inibir a produção imobiliária. As também restritivas e elitistas leis de uso e ocupação do solo (conhecidas como leis de zoneamento) encareceram a moradia em áreas centrais. Morar em regiões dotadas de infraestrutura, como é o caso do centro expandido, próximas a emprego, hospitais, escolas, tornou-se privilégio de quem pode pagar. Aos menos favorecidos restaram as franjas da cidade e o sacrifício de horas intermináveis em deslocamentos casa/trabalho, provocando trânsito, poluição, deseconomias.

A atual Lei de Zoneamento paulistana congelou o miolo de bairros em benefício dos mais ricos. Sim, porque limitar os edifícios a oito andares é permitir unicamente a oferta de unidades caras. O miolo de bairros tornou-se oásis de famílias privilegiadas.

E empurrem-se os que menos podem para as zonas periféricas, espraiando indevidamente a cidade, sem nenhuma preocupação com a sustentabilidade que edifícios altos proporcionam. O que é melhor: um prédio de 16 andares ou dois de 8, esta última alternativa ocupando espaço que poderia ser destinado a praças, áreas verdes e de convivência? Adensamento é o problema? Não é verdade. O bairro de Sapopemba quase não tem prédios e é um dos mais adensados de São Paulo.

Embora se diga sempre que habitação é prioridade, o discurso diverge da prática. É o que acontece, por exemplo, no Congresso Nacional, que a todo momento discute ampliar os saques no FGTS, a principal fonte de recursos para financiar mobilidade urbana, saneamento e habitação econômica. Fonte que permitiu o sucesso do programa Minha Casa, Minha Vida e seus 6 milhões de unidades, que abrigam 30 milhões de pessoas. Isso sem falar nos empregos e impostos criados pela indústria imobiliária. E sem falar no programa Casa Verde e Amarela, que veio para substituir o Minha Casa e não terá como se sustentar sem a preservação desse modelo.

Contamos hoje com avanços importantes. Temos a tão sonhada regularização fundiária. Se bem realizada, trará para a formalidade milhares de habitações irregulares, apagando o mapa da clandestinidade. Temos ainda o marco legal do saneamento básico, que não terá nenhum impedimento para alcançar essas moradias, uma vez regularizadas. E com a agilidade que só o capital privado pode conferir na solução dos problemas públicos de grande magnitude.

No retrovisor, o cenário tem chances concretas de melhorar. Entretanto, o compromisso com o presente e com o futuro chama-nos à responsabilidade: precisamos produzir habitações econômicas, e não dificultá-las! A persistir esse quadro, teremos mais invasões de áreas públicas e privadas, mais imóveis clandestinos, mais necessidade de anistias, de regularização fundiária…

É um círculo pernicioso e penoso. Uma pena paga pela população. Também é um ciclo preconceituoso, contra aquele que é o mais capacitado para produzir habitações regulares, que é o mercado imobiliário formal.

Mas de uma coisa estamos certos: a titularidade de um imóvel legítimo vai além da mera propriedade. Com ela vêm a territorialidade, a vizinhança, o pertencimento, o empoderamento. Vêm a cidadania, o civismo, a responsabilidade com o que é seu e de todos. E assim se faz uma nação.

Basilio Jafet, presidente do Secovi-SP

Fonte: Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo – 11/9/2020 – p. A2 – Espaço Aberto