Jaques Bushatsky* “Nas locações imobiliárias urbanas, nossas velhas narrativas e certezas ruíram” |
No ano passado, a pandemia impactou intensamente o mercado de locação e de compartilhamento de espaços, provocando rupturas conceituais e práticas.
Como bem definiu o historiador Yuval Noah Harari, na obra “21 lições para o século 21”, “todas as nossas antigas narrativas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para substituí-las”.
No âmbito das locações imobiliárias urbanas, que se relacionam fortemente com os condomínios edilícios, realmente as nossas velhas narrativas e certezas ruíram, e o enfrentamento e a solução de alguns temas extremamente sensíveis findaram adiados. Afinal, diante da pandemia, tudo perdeu importância.
Um exemplo significativo de assunto adiado para este ano é a alteração da legislação sobre a locação com destinação não comercial, objeto do Projeto de Lei do Senado nº 4.571/2019, do senador Rodrigo Pacheco, que tramitava celeremente.
A pandemia também provocou estudos e discussões profundos, seja pela imediata e óbvia repercussão nas atividades civis, seja porque objetivadas as locações urbanas na legislação emergencial, desde 20/3/2020, consistente basicamente (e não unicamente) no Projeto de Lei 1.179, que resultou na Lei 14.010/2020. Pontos nevrálgicos: legislar ou não sobre abatimentos nos aluguéis, despejos e prazos contratuais.
O único aspecto legislado foi o impedimento provisório de despejos liminares em algumas circunstâncias (art. 9º). Felizmente, em outubro do ano passado, a legislação voltou ao normal, bem compreendido por todos que o setor não comporta alterações legais intempestivas e que as regras precisam ficar estáveis para a paz social.
Caso prevalecesse, pouco se conseguiria nos fóruns brasileiros, quase totalmente impedidos de funcionar devido à pandemia, o que ensejou o acúmulo de ações judiciais almejando sentenças que impusessem novas relações nos contratos.
Todavia, o Judiciário se pautou com cautela, não vingando de modo geral as pretensões abusivas, o que por certo colaborou para serenar os ânimos, estimulando cada vez mais as negociações no setor. Parece razoável fixar como mote das melhores decisões a análise da perda da base do contrato, a partir daí rescindindo ou revisando os ajustes.
Aliás, o aumento das negociações levou as imobiliárias a sofisticar seus departamentos, valendo-se crescentemente de mediadores e conciliadores com notável sucesso, o que retrata a maturidade de locadores, locatários e intermediários.
O ambiente provocado pela pandemia também estimulou novos modelos, como o incremento do home office, induzindo as empresas a repensarem seus espaços corporativos. A mesma reorganização ocorreu nos condomínios residenciais, onde convivem moradores que trabalham ou não, cada qual com suas exigências.
Outra prática incrementada foi a digitalização de documentos, assinaturas e mesmo das conversações entre os contratantes. Com a confirmação da legalidade dos contratos digitais, o modo de celebrá-los evoluiu, aliando agilidade a custos menores, embora ainda seja necessária maior adaptação dos profissionais, o que ocorrerá naturalmente.
A pandemia trouxe grandes desafios, enfrentados com engenhosidade pelos profissionais do Direito e pelos operadores das locações imobiliárias. Evidencia-se de forma incontestável que a locação é apenas um dos afazeres das pessoas. Diariamente aprendemos o que é novo e colocamos em prática. E aprendizado, sem dúvida, é das poucas narrativas que prevalecem.
*Advogado e pró-reitor da Universidade Secovi