Ao completar 10 anos de existência em 2019, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), maior programa habitacional da história recente do Brasil, merece ser pensado e repensado. Embora seu êxito seja incontestável, as arestas a serem aparadas são inúmeras – nada, porém, que desabone a iniciativa em sua totalidade.
Considerando o tamanho do programa, é até normal que haja lacunas a serem preenchidas. Os números do MCMV são de proporções bíblicas. De 2009 a 2018, foram R$ 458 bilhões em contratações. Em dólares com cotação atualizada para 2018, esse montante equivaleria a US$ 118 bilhões. Para se ter uma ideia, essas cifras foram as mesmas que os Estados Unidos gastaram com o Plano Marshall para reconstruir a Europa depois da Segunda Guerra Mundial.
Nesse período, o número de moradias contratadas foi de cerca de 5,5 milhões, beneficiando mais de 16 milhões de pessoas. É como se tivéssemos construído casas para uma Portugal e uma Dinamarca juntas.
“Indiscutivelmente, é um programa que surgiu tarde demais. Desde o final do BNH até o início do Minha Casa, Minha Vida, o setor de habitação de interesse social ficou abandonado. Resultado disso foi o crescimento das habitações informais e de baixa qualidade. Esse programa chegou para interromper o crescimento desorganizado dos centros urbanos. Embora ainda não consiga cobrir toda a demanda necessária, foi um avanço importantíssimo para a sociedade”, diz Rodrigo Luna, vice-presidente de Habitação Econômica do Secovi-SP. Mesmo com o volume de moradias produzidas nos últimos 10 anos, o déficit habitacional cresceu no mesmo período, saltando de 6 milhões de habitações (2009) para 7,7 milhões (2018), segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas.
Consequência positiva do programa, a geração de mão de obra foi profundamente impactada: mais de 1,2 milhão de pessoas foram diretamente empregadas em função do MCMV – 775 mil delas nas obras. Quando se considera os postos de trabalho indiretos, esse número salta para 3,5 milhões, segundo cálculos da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção). Eis uma prova de que construção civil é emprego na veia.
Os combalidos cofres públicos também se valeram do programa para recrudescer sua arrecadação. Em toda a cadeia, foram arrecadados R$ 163 bilhões. Em miúdos, boa parte dos impostos gerados pelo programa acaba voltando ao Tesouro.
Efeitos positivos – Particularmente no mercado imobiliário, os efeitos do MCMV saltam aos olhos. Em 2018, as habitações passíveis de enquadramento no programa foram responsáveis por metade dos lançamentos no principal mercado de imóveis do Brasil, o da cidade de São Paulo. Em nível nacional, essa proporção chega a ser superior a dois terços.
“O Minha Casa, Minha Vida é um legado que não pode ser esquecido. É um dos poucos programas que conseguiu amplitude nacional, não ficando restrito a grandes centros urbanos. Abrangeu até mesmo imóveis rurais”, diz Carlos Henrique de Oliveira Passos, vice-presidente de Habitação de Interesse Social da CBIC e presidente do Sinduscon-BA.
O executivo da CBIC ressalta, ainda, a abertura de horizontes proporcionada pelo MCMV. Todo o tipo de empresa de todas as localidades do País pode participar de um projeto nacional, independentemente do seu porte. Desde grandes companhias listadas na B3 até pessoas físicas que se tornaram CNPJ para poderem se habilitar a construir unidades para o programa, foram abraçadas por sua magnitude.
Marco Antônio Corsini, vice-presidente do Sinduscon Joinville (SC), expande a análise para outras franjas abarcadas pelo programa. “Não podemos olhar apenas para a moradia. Temos de ver toda a cadeia que foi impactada, como a dos móveis, utensílios domésticos, eletrodomésticos etc.”
Embora os benefícios do MCMV sejam inegáveis, várias são as melhorias necessárias para que opere em sua plenitude. A faixa 1 – aquela que financia famílias de baixíssima renda e, por isso mesmo, tem função social ainda mais acentuada – é a que mais tem pontos a rever.
Clausens Duarte, diretor de Habitação de Interesse Social do Sinduscon-CE, exemplifica citando casos em que as empresas constroem o empreendimento mas, em contrapartida, a velocidade dos municípios para prover a infraestrutura necessária não avança na mesma proporção. “A empresa pode construir as unidades, mas, se o poder público não faz sua parte em relação a instalação de serviços de água e esgoto, por exemplo, a região fica sem condições de habitabilidade.”
Adicione-se a isso o fato de que as famílias para essa faixa são indicadas pelo governo. Não raro, ocorrem descompassos, ao ponto de a empresa terminar as obras e o poder público ainda não ter formado a demanda para ocupar os empreendimentos.
O resultado se reflete no número de unidades concluídas – cerca de 4,57 milhões, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) – versus o volume de habitações entregues, pouco mais de 4,08 milhões. São cerca de 500 mil residências ociosas, que poderiam já estar dando teto a 2 milhões de pessoas.
De forma geral, os descasamentos entre a entrega dessas obras por parte das empresas e o cronograma de instalação de serviços públicos ocorrem com mais frequência em regiões distantes dos centros urbanos. O porte dos empreendimentos concebidos nessas localidades, também de maneira geral, é gigantesco: muitas unidades para milhares de pessoas.
A razão para a construção em massa de unidades em regiões ainda não consolidadas – sem oferta de esgoto, saneamento, rede de serviços etc. – é o preço e a disponibilidade da terra. Nessas regiões, a conta fecha mais facilmente para o MCMV atender à faixa 1.
Para Marco Antonio Corsini, do Sinduscon Joinville, é necessário que se encontrem alternativas para mitigar esse tipo de percalço. “Se tiver como diminuir o tamanho desses empreendimentos, é mais fácil encontrar disponibilidade de terrenos para comportar o projeto em regiões mais bem localizadas.”
Alternativas – Melhorias como essas têm sido constantemente debatidas por entidades empresariais de todo o País. E elas não se restringem apenas à faixa 1 do MCMV; constituem uma proposta mais abrangente, com vistas a proporcionar acesso a moradia digna tendo como o fio condutor as habitações de interesse social.
Um compêndio das diretrizes resultantes dessas conversas foi apresentado durante o último Enic (Encontro Nacional da Indústria da Construção), realizado no Rio de Janeiro, em maio.
“Precisamos ir além do conceito de propriedade. Moradia é mais que isso. Nós acreditamos que o modelo de locação social, por exemplo, pode ser um primeiro degrau de acesso à habitação para muitas pessoas”, afirma Eduardo Aroeira, presidente da Ademi-DF.
Oportuno lembrar a definição do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), de que moradia não se resume meramente a quatro paredes encimadas por um teto. Por moradia, deveria se entender um local salubre, com condições mínimas à sobrevivência, como saneamento – água, tubulação para esgoto, coleta de lixo, pavimentação – e luz elétrica. Além de ser seguro e acessível aos serviços públicos básicos, como escolas, postos de saúde, praças e transporte público.
Esse conjunto de fatores pode estar ao alcance de empreendimentos do MCMV, sem, necessariamente, ancorar-se na propriedade do imóvel, como de costume. “Nos Estados Unidos, que é um mercado maduro, a quantidade de residências alugadas em relação ao todo é de 40%. Aqui, no Brasil, essa proporção é de 20%. A locação social é um item que pode compor a solução de acesso a moradia digna”, diz Clausens Duarte, do Sinduscon-CE.
Outros modelos debatidos são os de moradia temporária, por arrendamento e de lotes urbanizados. Consequências positivas dessas implementações podem ser retrofit de imóveis em centros urbanos, ocupação de terrenos e prédios públicos, revisão geral do papel das concessionárias de serviços públicos, prazo de pagamento de até 25 anos para assistidos pela faixa 1 e, até mesmo, um programa específico para aquelas pessoas que adquirirem o primeiro imóvel.
Suporte e orientação – Junto com a oferta de moradia, o setor entende que as famílias beneficiadas deveriam passar por um processo de suporte à nova realidade de suas vidas. Exemplos de iniciativas nesse sentido seriam serviços sociais de apoio à geração de renda, como microcrédito para incentivo ao microempreendedorismo com apoio do Sebrae. Também seria oportuno um trabalho de orientação sobre o convívio e a realidade da vida em um condomínio – que, muitas vezes, é radicalmente diferente das experiências de moradias tidas pelas famílias de mais baixa renda.
As medidas estudadas têm como pano de fundo uma série de fundamentos que não podem ser perdidos. A produção em amplitude nacional, a abertura à participação de todo o porte de empresas, a ocupação de vazios urbanos, melhoria de tecnologia, o aumento da produtividade, a formalização das cidades, o fomento à economia local onde se instalam os empreendimentos e a curva de aprendizado são alguns dos pontos principais.
Da experiência acumulada em 10 anos, o mercado pode extrair muitos aprendizados e transformá-los em subsídios técnicos para apresentá-los ao poder público. A aproximação dos empreendimentos dos centros urbanos, com menos escala, é um deles. Uma vez que o porte dos prédios é menor, em tese, encontrar terrenos aptos a recebê-los se torna menos oneroso.
Outro ponto é a falta de compromisso financeiro das famílias contempladas pelo faixa 1. “É preciso acabar com a cultura da inadimplência”, enfatiza Carlos Henrique, do Sinduscon-BA. Como pilares para combatê-la, o setor acredita que deve haver melhoria na gestão da cobrança, meios de geração de renda às pessoas assistidas pelo programa e o início da cultura de retomada do imóvel em casos de não pagamento.
Recursos escassos – Nas demais faixas do programa, de atuação do mercado, os dirigentes sublinharam a preocupação com a perenidade dos recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). “É indispensável que esse funding seja preservado”, alerta Luna, do Secovi-SP, lembrando das constantes investidas contra o Fundo.
Aoreira, da Ademi-DF, lembra, inclusive, que os impostos gerados nas faixas de mercado ajudam a retroalimentar o erário, praticamente compensando os gastos do Orçamento Geral da União (OGU) na faixa 1.
“Os problemas de recursos ainda não estão superados. Não temos como melhorar o OGU, e o FGTS está limitado. Temos uma demanda que continua crescendo e prevemos dificuldades de acesso a recursos principalmente neste segundo semestre”, afirma Celso Petrucci, economista-chefe do Secovi e presidente de Comissão da Indústria Imobiliária da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CII/CBIC).
O que vem por aí? – No dia 4 de junho, o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, compareceu a audiência na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara Federal para explicar o que o governo federal pensa para o MCMV nos próximos anos. A ideia é dividir o programa em dois, com critérios e subdivisões de acordo com a renda familiar. Serviços de moradia social e de locação foram algumas das principais novidades apresentadas.
“Nossa proposta tem duas frentes. Uma delas é promover o acesso à habitação, e a outra é promover melhorias nas condições de moradia”, explicou Canuto. Segundo o ministro, outra das prioridades será reduzir desigualdades entre as diferentes regiões do Brasil, e atender os Estados que têm maior demanda, concentrados nas regiões Norte e Nordeste.
Com as mudanças no Minha Casa, Minha Vida, haverá produtos diferentes para famílias com baixíssima renda, equivalente a até um salário mínimo, e para aquelas com renda baixa ou média, ou seja, de dois a sete salários. “O objetivo foi identificar os principais problemas e atacar cada um deles com um programa diferente, porque são necessárias estratégias específicas”, esclareceu Canuto, segundo quem o valor do salário deverá variar conforme a região, obedecendo ao poder de compra da localidade.
A expectativa é que as principais falhas do programa – comercialização irregular, conflitos sociais, ocupação de unidades por facções criminosas, construção desordenada, pós-ocupação, entre outros, conforme listado pelo ministro – sejam amainadas. Parte delas deverá ser sanada por meio de programas sociais específicos. “Uma família que recebe imóvel de R$ 80 mil e tem de vender por R$ 15 mil está em uma situação difícil. Ela sabe do valor do imóvel, mas, mesmo assim, faz essa operação. Já vimos que, no faixa 1, existe cerca de 30% de comercialização irregular”, disse o ministro.
Para as famílias de baixíssima renda, sem condições de contrair financiamento ou em situação de moradia precária, o governo prevê um serviço de moradia social, por meio do qual serão construídos conjuntos habitacionais a serem administrados pelos municípios por intermédio de concessionárias. Os moradores serão então assistidos com capacitações do Ministério da Cidadania, com o objetivo de se inserirem no mercado de trabalho e, eventualmente, poderem comprar sua própria residência.
Canuto informou que as famílias beneficiadas com essa alternativa precisão apenas pagar contas de água e de luz para ficar no condomínio, sendo dispensadas de arcar com IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), taxa condominial e locação. “Não é aluguel. O imóvel é público. É uma assistência, um meio de estender a mão para quem mais precisa no momento.”
Quanto às famílias de baixa e média renda, estão previstos diferentes incentivos para a aquisição de unidades habitacionais. Um deles é o financiamento, cujas regras também seguirá critérios de renda. Serão desenhadas três faixas. Na primeira faixa, serão contempladas pessoas com até dois salários mínimos, a taxa de juros reduzidas, e tendo de pagar por 50% do imóvel. Os recursos do FGTS cobrirão 25% e o OGU arca com os 25% restantes.
Beneficiários que ganhem até quatro salários também terão o desconto do FGTS, além de taxas de juros reduzidas. Finalmente, famílias com até sete salários não contarão com subsídios, apenas as taxas menores.
“Nós estamos vendo com bons olhos todos esses aprimoramentos”, diz Celso Petrucci, do Secovi-SP e da CBIC. “Na realidade, vão limitar o atendimento do que antes se chamava faixa 1. As operações da faixa 1,5 terão condições melhoradas, e as demais faixas seguem inalteradas.”
Reportagem de Leandro Vieira para a Revista Secovi-SP – A revista do Mercado Imobiliário 302, Junho/Julho de 2019, pp 12 a 18.
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