Uma das interpretações da Carta de Atenas, assinada em 1933 por imponentes nomes da arquitetura, construiu cidades onde trabalho, lazer e moradia se expandem em espaços separados. A atenção especial aos hábitos da sociedade, no entanto, faz com que novos empreendimentos sejam planejados a partir do conceito de “morar bem” e com qualidade de vida. Pensando nisso, um escritório de engenharia de Porto Alegre inicia os trabalhos do primeiro bairro sustentável do país em Pelotas, na Região Sul do Rio Grande do Sul.

O arquiteto paranaense Jaime Lerner, referência em planejamento urbano através da experiência como prefeito de Curitiba, assina a obra. Para ele, a união de moradia, lazer e trabalho não é uma tendência ou modismo atual.

“Uma interpretação errônea da Carta de Atenas acabou criando áreas urbanas que perderam a escala humana, o ritmo do passo do pedestre, a familiaridade da vizinhança, a oportunidade do encontro no espaço público. “As pessoas querem mais qualidade de vida”, apontou o arquiteto ao G1.

Para quem costuma perder tempo da rotina em deslocamentos do trabalho para casa, o objetivo do novo bairro é subtrair.

“Perder duas horas por dia em deslocamentos para o trabalho não é razoável. Precisamos, portanto, aproximar o emprego da moradia. Espaços públicos de qualidade, áreas verdes, equipamentos culturais, infraestrutura social, lazer: tudo isso deve estar integrado o máximo possível no cotidiano dos cidadãos. Considero isso como ‘morar bem’”, completou Lerner.

No empreendimento de 30 hectares a ser construído na Zona Norte da cidade, planejado pelo escritório de engenharia Joal Teitelbaum, a tríade se desenvolve a partir do princípio do “novo urbanismo” e da certificação do LEED-ND, do US Green BuildingCouncil. O selo requer uma série de soluções, como conservação de corpos hídricos e áreas alagáveis, redução da dependência de automóveis, projeto de ciclovias e bicicletários e incentivo ao uso misto.

“Essa certificação se divide nos quesitos ‘localização inteligente’, ‘projeto e padrão de bairro’, ‘edifícios e infraestrutura verde’, e ‘inovação + prioridades regionais’. Dentro de cada uma dessas categorias existe uma série de pré-requisitos que obrigatoriamente devem ser atendidos”, explicou o diretor de relacionamento com o mercado do escritório de engenharia, Claudio Teitelbaum.

A urbanização será feita pela empresa, mas outras construtoras poderão investir no local.

As obras, que têm previsão de término para 2017, devem movimentar pelo menos 1,5 mil trabalhadores da cidade. “A fase inicial da urbanização da área terá um investimento ao redor de R$ 40 milhões”, pontuou Teitelbaum.

Embora os negócios sustentáveis pesem ainda no bolso dos consumidores, o escritório de engenharia garante que os moradores sentirão os benefícios e, a longo prazo, o retorno será positivo.

“Os ‘green buildings’ reduzem consideravelmente os impactos ambientais, melhoram a qualidade de vida dos colaboradores e futuros moradores, além de gerarem grandes economias financeiras, de modo que os ganhos se potencializam a cada ano. Segundo estudos e simulações, as iniciativas sustentáveis possibilitam uma economia de água de cerca de 30% e de energia de aproximadamente 40%”, garantiu o diretor.

Subtrair tempo para otimizar

Além das soluções verdes, o primeiro bairro sustentável do Brasil terá também lagos e píeres, trilhas para caminhada, quadras poliesportivas e complexo de lazer público. Um mirante será construído em um parque e a ideia é oferecer vista privilegiada de todo o bairro e suas áreas adjacentes. Estão previstas também as construções de uma torre comercial, um hipermercado e um hotel de categoria internacional.

“A cidade deve ser o cenário da acolhida e valorização da diversidade: de funções, de idades, de rendas, de usos, de tipologias. É o espaço que agrega e integra. A ‘sociodiversidade’ compreende a necessidade de acolher e celebrar a multiplicidade, ao mesmo tempo em que se preservam as características que definem a identidade. É isso que ajudará a garantir a coesão social, a segurança urbana, e, no limite, a possibilidade das trocas na cidade”, explicou Lerner sobre o conceito do bairro Quartier.

A integração será pautada também depois de pronto o terreno. Como outras construtoras poderão investir no local, para estarem ali os negócios precisarão seguir uma série de normas.

Os prédios a serem construídos, por exemplo, serão “manzanas cerradas”, baseado em conceitos de cidades espanholas como Barcelona e Madrid.

“São edificados no alinhamento externo das quadras, gerando grandes áreas de convívio interno para os moradores e, ao mesmo tempo, fazendo com que as edificações ‘conversem’ com a rua e com os pedestres. Gera o que chamamos de vida em comunidade”, salientou Teitelbaum.

A “sociodiversidade”, de fato, foi um dos conceitos que inspiraram Lerner na criação do bairro. “Procuramos traduzir o que acreditamos ser uma visão positiva para o futuro das cidades: ter um desenho claro que dialogue com as condicionantes ambientais de forma a valorizá-las e apropriá-las ao cotidiano dos moradores; promover a densidade e a mistura de usos que possibilite aos residentes usufruir de uma atmosfera de urbanidade em uma escala humana”, ressaltou o arquiteto.

Fonte: G1, 31/7/2014