A questão já estava sedimentada desde 2010, quando o próprio pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) definiu o tema 295: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da lei 8.009/90 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da CF, com redação da EC 26/20”.
Tal definição não fez qualquer distinção quanto à origem do contrato, se residencial ou comercial, sendo certo ainda que o leading case que gerou o que deveria ser a pacificação do tema era originário de uma locação comercial.
No entanto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 605.709, de relatoria da Ministra Rosa Weber, por maioria apertada, a Primeira Turma do STF considerou inconstitucional a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação comercial. Vale dizer que ainda não transitou em julgado, uma vez que é objeto de embargos infringentes.
Neste julgamento, diversas perspectivas jurídicas do tema foram abordadas, mas especialmente resumidas na isonomia das consequências patrimoniais ao locatário e ao fiador, que são diferentes, e à constitucionalidade da penhora diante da elevação do direito à moradia como direito social garantido pela Constituição.
Porém, muito embora tal julgamento tenha aberto a dissidência, a mesma Primeira Turma já reconsiderou o seu posicionamento, qualificando esta decisão como “isolada”, e tem julgado a questão mantendo a viabilidade da penhora. Vide a decisão no RE 1.223.843, que sem poupar palavras assim asseverou: “Quanto ao recente julgado proferido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no RE 605.709, em que foi afastada a penhorabilidade do bem único do fiador em contrato de locação comercial, trata-se de posição isolada desta Corte, não se sobrepõe ao precedente formado pelo Tribunal Pleno sob a sistemática da repercussão geral”.
Assim, em que pese a “retratação expressa” da Primeira Turma, não só no julgado acima, mas em tantos outros – como o RE 1.240.968, RE 1.282.000, Reclamação 38.822, etc. –, a Segunda Turma acabou por seguir aquele precedente RE 605.709 que, repita-se, ainda não transitou em julgado. Assim, temos as duas turmas julgando de forma distinta. A Primeira Turma reconsiderou sua posição e mantém a penhorabilidade do bem único do fiador. Já a Segunda Turma, tocada pela decisão isolada, traçou uma mudança inesperada e considera inconstitucional a penhora do bem único do fiador em sede de locação comercial.
É inegável a importância social da questão.
Conforme levantamentos, o total de metros quadrados construídos de imóveis não residenciais (atingidos pela decisão em foco) no território nacional (shopping centers, edifícios de escritórios, imóveis de uso logístico e industrial, galpões isolados, pequeno, médio e grande comércio, entre outros) alcança a ordem de 685 milhões de metros quadrados. Destes, 51% estão alugados, totalizando aproximadamente R$ 17,5 bilhões/mês. Este é o segmento econômico mais afetado, conforme o destino que se atribuir à demanda judicial em foco, observe-se.
Ressalta-se que, em sondagem nacional, ao se observarem apenas as locações comerciais, num universo de aproximados 20 mil contratos, verificou-se que dentre as de menor porte, com valor médio de R$ 3.377,00 (três mil trezentos e setenta e sete reais), 78% eram garantidas por fiadores. Como se nota, a fiança em locação comercial, na grande maioria dos casos, é utilizada pelos pequenos empreendedores, uma vez que as grandes locações, em regra, utilizam outras modalidades de garantia.
Na expressiva maioria dos casos, estes fiadores são os sócios da pessoa jurídica afiançada, viabilizando assim que o capital financeiro seja totalmente investido no seu próprio negócio, e não em garantias locatícias custosas. Em poucas palavras: a fiança nessas locações comerciais viabiliza o próprio negócio instalado, a geração de empregos e os corolários econômicos notórios.
É o caso do novo leading case, isto é, o caso que viabiliza a nova apreciação. Fiadores que são os sócios administradores da pessoa jurídica locatária, que assinaram o contrato de locação com vigência de 36 meses a partir de 2017, utilizando a seu favor a garantia própria que é a única gratuita, e, logo em 2018, deixaram de pagar, sem se manifestar ou participar da ação de despejo.
De acordo com o presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SC, Leandro Ibagy, a matéria não deveria ser revista. A uma em favor da preservação da segurança jurídica dos contratantes. A duas porque o tema encontrou solução em 2006 no julgamento do RE 407.688, sendo ampliado à condição de repercussão geral em 2010, junto ao RE 612.360. Não se diga que o tema 295 possa ser apenas utilizado nas locações residenciais. O leading case da repercussão geral em comento deu-se em sede de locação comercial.
Na visão do presidente do Secovi Rio, Pedro Wähmann, uma mudança no entendimento poderá afetar muito o segmento da locação comercial no Brasil. Em sua expressiva maioria, os próprios comerciantes e empresários são os fiadores da locação. Isto facilita a operação e a torna gratuita. Se a mudança do entendimento vier a acontecer, o mercado não mais aceitará esta modalidade de garantia e todas as locações deverão perseguir modalidades onerosas para a sua realização. No final, milhares de comerciantes terão de sucumbir com 1,5 a 2 aluguéis ao ano para conquistarem acesso a locação de uma sala, loja, galpão ou terreno.
Para o Secovi-SP, esse novo entendimento resulta em insegurança jurídica, uma vez que os contratos foram firmados levando em consideração o que diz a lei. Essas decisões podem desestimular o uso da garantia em aluguel comercial mais usual do mercado e a única gratuita. E, ainda, encarecer outras formas de garantias, como seguro-fiança e caução, avalia Adriano Sartori, vice-presidente de Gestão Patrimonial e Locação do Secovi-SP.