Na década de 1970, o conceito de sustentabilidade era visto como um ideal utópico e de pouca aplicação prática. Hoje, 40 anos depois, faz parte do cotidiano da sociedade. E não é para menos. Vivemos em um mundo cada vez mais urbano, onde equilibrar nossas demandas com os recursos disponíveis tornou-se um desafio.

Uma projeção da Organização das Nações Unidas (ONU) estima que até 2050 pelo menos 75%  da população mundial devem viver em cidades. No início do século XX, a cada 10 pessoas, nove moravam e trabalhavam no campo. Se por um lado o fato de habitarmos áreas densamente povoadas ajuda a organizar os eixos de infraestrutura ao redor do planeta, por outro essa ocupação gera efeitos colaterais, como uma alta incidência de doenças, criminalidade e poluição.

Mas se esse é um caminho sem volta, como suprir as necessidades das gerações atuais sem afetar as próximas? Em entrevista à Revista Secovi Rio, a engenheira civil Clarice Menezes Degani, especialista em sustentabilidade, aponta estratégias de construção e gestão predial que podem fazer toda a diferença nesse cenário.

Mineira de Uberlândia, Clarice vive em São Paulo, onde é assessora técnica da vice-presidência de Sustentabilidade do Secovi-SP. Aos 41 anos, a engenheira tem doutorado em Tecnologia e Gestão da Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No Secovi-SP, auxilia o Sindicato em questões que afetam a habitação local, como as recentes ameaças de racionamento de água na capital paulista e as novas políticas públicas de construção.

A engenheira também atua na Fundação Vanzolini, onde audita empreendimentos interessados em obter o selo internacional Alta Qualidade Ambiental (AQUA). Também participa de uma pesquisa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para o desenvolvimento de estratégias que minimizem os impactos de um canteiro de obras. A iniciativa visa reduzir o desperdício de materiais, a emissão de poeira e os incômodos à vizinhança.

Clarice é uma das convidadas do debate “Práticas Sustentáveis”, que integra a programação da 5º Feira Secovi Rio de Condomínios, dias 23 e 24 de setembro, no Centro de Convenções SulAmérica.

O que separa um projeto de sustentabilidade de um edifício sustentável?

Inicialmente, não deveria existir um projeto de sustentabilidade. Um bom projeto de arquitetura e de instalações prediais, por si só, já deveria ter o compromisso de garantir soluções de desempenho que garantam a sustentabilidade das edificações. Um edifício sustentável de fato apenas consegue tirar proveito de todas as soluções de sustentabilidade nele embarcadas se houver uma gestão predial eficiente. Para isso, deve haver um sistema pautado pela capacitação profissional, com contratos dos serviços vinculados a desempenho, rotinas de monitoramento de consumos, emissões e qualidade dos ambientes, entre outros fatores.

O Brasil reaproveita apenas 1% dos resíduos da construção civil, enquanto na Holanda esse percentual chega a 90%. Por que a diferença tão grande?

Os resíduos da construção civil são gerados nos canteiros de obras brasileiros em grande escala, especialmente em virtude das características de nosso sistema construtivo, ainda pouco industrializado e que gera perdas significativas. Para que o reaproveitamento de grande fração destes resíduos seja viável, como ocorre em outros países, é preciso um planejamento detalhado antes do início das atividades em canteiro, de modo a prever a quantidade gerada por classe de resíduo e investigar as melhores alternativas para o seu aproveitamento.

Falta regulação para que esse processo seja efetivo?

A Política Nacional de Resíduos Sólidos e da resolução 307 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) exige que cada município tenha seu Plano Municipal de Gestão de Resíduos da construção civil e garanta a presença da infraestrutura necessária à destinação dos resíduos dos canteiros de obra. Apesar disso, nem todos se adequaram e não há fiscalização efetiva nos geradores de resíduos. A falta de amadurecimento, ou até mesmo de conhecimento quanto ao uso de agregados reciclados a partir de resíduos inertes dos canteiros de obras, também faz com que a indústria da reciclagem não tenha se desenvolvido como necessário para garantir a captação destes resíduos em grande escala. O desenvolvimento dos processos de logística reversa, ou seja, o recolhimento dos resíduos pela própria indústria para a reinserção na sua cadeia produtiva, também ainda é incipiente no Brasil, considerando a grande variedade de materiais de construção disponíveis.

Após a experiência com as obras nos estádios da Copa, você acredita que o Brasil adote sustentabilidade como norma para suas construções?

Na prática, as edificações públicas brasileiras já deveriam atender aos requisitos de eficiência energética da etiquetagem do Procel Edifica (Procel/Inmetro), por exemplo. A resolução do Conama teoricamente deveria garantir a gestão adequada dos resíduos da construção civil em todos os municípios brasileiros. E, considerando as obras nos estádios da Copa, nem a metade deles optou por seguir padrões de sustentabilidade ou efetivamente os adotou de modo coerente com o local em que foram construídos, muito menos no que diz respeito a aspectos relevantes de desempenho e gestão de resíduos em canteiro de obras.

Qual o caminho para elevar o padrão de sustentabilidade de nossas edificações?

Acredito que se o Brasil fizer valer a norma de desempenho NBR 15.575 (que disciplina o conforto acústico nas unidades habitacionais), o regulamento da etiquetagem de eficiência energética dos edifícios Procel/Inmetro e a Política Nacional de Resíduos Sólidos, já teríamos um bom avanço. Hoje, partem para a sustentabilidade efetiva apenas alguns empreendedores imobiliários, reconhecedores de seu valor para a sociedade e para a indústria da construção civil. Eles adotam, voluntariamente, as medidas de sustentabilidade, principalmente as exigidas pelos sistemas de certificação Processo AQUA, auditado pela Fundação Vanzolini, e o selo LEED, verificado pelo United States Green Building Council.

O retrofit surgiu para aumentar a vida útil de edifícios tombados na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil o cenário é diferente. Como conscientizar os empresários sobre a importância desses investimentos?

Da mesma forma que nos países estrangeiros, as edificações públicas deveriam dar o exemplo. De qualquer maneira, os investidores privados irão optar pelo retrofit sempre que houver viabilidade econômica e demanda neste sentido. Já se percebe o movimento de arquitetos e projetistas de instalações prediais no sentido de buscar soluções de projeto para retrofits. A partir desta demanda, as construtoras também buscarão aperfeiçoar suas técnicas de desconstrução e revitalização.

Quais os valores médios gastos para ‘retrofitar’ um condomínio?

Não há um número, nunca haverá. Cada retrofit deve ter sua viabilidade analisada a partir de um diagnóstico da situação existente, que indicará quais os sistemas mais obsoletos ou cujas despesas sejam significativas. Os serviços de retrofit deverão ser projetados para estes sistemas identificados e o cálculo da viabilidade do investimento deve considerar não apenas o custo dos serviços, mas também a economia ou benefícios obtidos após a intervenção.

A aprovação de um projeto de retrofit pelos órgãos competentes costuma ser mais rápida que nas obras convencionais, mas muitos engenheiros relatam que algumas reformas são consideradas novas obras, o que pode retardar a concessão do habite-se. Como contornar essa situação?

Em geral, não há nada que indique que os riscos de uma ação de retrofit sejam mais baixos do que os de uma construção nova. Em muitos casos seria até mesmo o contrário. Sendo assim, o tempo real para análise e aprovação não seria necessariamente menor ou maior. Entretanto, a título de incentivo ao retrofit, e se houver a disponibilização de uma equipe especializada com grande quantidade de profissionais que possam atendar a esta demanda e, aí sim, pode-se ter a aprovação desses projetos com maior agilidade.

À medida que as construções sustentáveis se tornam objetos de desejo, crescem as certificações que atestam os cuidados na edificação e a eficiência da operação. Essas certificações são, de fato, um caminho para os empreendedores?

Sim, desde que o seu mercado consumidor reconheça os benefícios das edificações mais sustentáveis e veja os processos de certificação como auditorias de terceira parte e que garantam o acompanhamento efetivo da aplicação de melhores soluções de projeto e do melhor desempenho final da edificação.

No Rio um número expressivo de novos empreendimentos se concentra na Zona Oeste. Que tipo de planejamento deve ser feito para reduzir o impacto ambiental da ocupação urbana?

É o Plano Diretor Municipal que define a vocação de cada região. Sabe-se que o planejamento urbano sustentável fundamenta-se na criação de várias centralidades em um mesmo município e adensadas na medida de seu contexto. A partir disso, busca-se otimizar o uso da infraestrutura urbana (abastecimento de água, gás e energia, coleta de esgoto, drenagem, redes de informação, meios de transporte) e a melhor qualidade de vida da população (qualidade da água, qualidade do ar, conforto ambiental), além de disponibilizar serviços diversos como educação, lazer, comércio, saúde, trabalho e moradia.

Como o gestor de um condomínio pode avaliar se seus investimentos em sustentabilidade estão alcançando um retorno satisfatório?

Antes do investimento, o desempenho anterior deve ser medido e as deficiências identificadas. Os benefícios decorrentes do investimento devem passar então a ser monitorados e apontados em planilhas, com frequência adequada, para que possam ter seus valores comparados. Indicadores de desempenho devem ser estabelecidos e monitorados. Para iniciar este trabalho, o Secovi-SP irá realizar um levantamento dos consumos de água, energia e gás em condomínios habitacionais da cidade de São Paulo, com o objetivo de obter os indicadores de consumo locais. Apenas a partir deste conhecimento é que podem ser identificadas as melhores práticas a serem adotadas pelos condomínios para a sua redução.

Esse ano, o fantasma do racionamento de água voltou a preocupar São Paulo e, por consequência, outras grandes metrópoles do País. Como os gestores de condomínios devem lidar com esse problema?

O primeiro passo é o diagnóstico dos sistemas consumidores de água do condomínio. A partir desse diagnóstico, o gestor passa a ter conhecimento dos pontos de maior consumo e identifica eventuais pontos de vazamento ou até mesmo de desperdício. Desse conhecimento, passa-se à escolha das soluções em sistemas prediais, em equipamentos ou, até mesmo, em simples mudanças de rotinas operacionais nas atividades de limpeza e irrigação, por exemplo, que podem ser adotados para a redução no consumo de água. A adoção de hidrômetros setorizados em longos trechos de distribuição e nas unidades autônomas é essencial.

O tema desta edição da Feira Secovi Rio, ‘Condomínio Ideal’, faz uma reflexão sobre algo que não deve ser encarado como utopia. Que aspectos ajudam a alcançar esse ‘padrão ideal’?

O padrão ideal é o padrão real, ou seja, que está dentro das possibilidades de gestão e capacitação das equipes de operação e manutenção e que tem o objetivo de atuar nas reais necessidades dos diferentes usuários do condomínio. É fundamental identificar as necessidades de seus usuários, salientar os benefícios decorrentes da aplicação de melhores rotinas gerenciais e sistemas prediais mais eficientes e atuar na sensibilização e educação ambiental, tanto junto a funcionários quanto a usuários.

Fonte: Igor Augusto Pereira, Revista Secovi Rio, Setembro/Outubro 2014