Nós, que fazemos parte da sociedade consciente e aculturada, assistimos estarrecidos ao que hoje acontece na cracolândia. Uma situação cruel, pior que as geradas por guerras. Um cenário desumano, de corpos machucados, olhares vazios, instintos grotescos, pois é tudo por uma pedra.
Impossível não acionar a memória e buscar explicações. Naturalmente, existem várias delas, mas uma me vem de imediato à lembrança: quando os nossos congressistas fizeram o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), apoiados pelos poderes Executivo e Judiciário, esqueceram que estávamos fazendo leis para o Brasil, uma terra ainda de tupiniquins e de rincões com pobreza extrema, como recentemente bem definiu a Presidente Dilma Rousseff.
Quando o governo, além de tentar interferir no chamado “Sistema S” (Senai, Senac, Sesi, Sebrae e outras instituições ou organizações do setor produtivo), proíbe que menores de 16 anos entrem no mercado formal de trabalho, está atirando esses adolescentes para a famigerada cracolândia e similares, verdadeiros vales de desalento, onde o que mais impera, afora o trafico, é a omissão.
É muito bonito dizer que lugar de criança é na escola ou, então, brincando – algo legítimo da infância sadia. Mas o que dizer de escolas tão distantes que seus alunos têm de fazer quilômetros a pé para ali chegar?
Assistimos entrevistas pela televisão com menores de 13 anos que traficam na cracolândia. O que impressiona é ver que jornalistas conseguem localizá-los, mas não o poder público, o que nos leva à triste dedução de que preferem ignorar a tomar uma atitude.
Sabemos que a adolescência é uma fase difícil da vida, repleta de dúvidas e questionamentos, negações e revoltas. Conforme o tipo de ambiente familiar, e principalmente naqueles marcados pela violência e a ignorância, muitos jovens encontram nas drogas uma resposta, quer como usuários, quer como ganha-pão.
Se procurarmos na história do País, veremos que os grandes homens começaram a trabalhar muito cedo e nenhum se sentiu explorado. Fizeram carreiras belíssimas dentro da ética, honestidade, moral e honra. São pessoas que deram as bases ao País. Os exemplos são muitos de meninos e meninas que como ascensoristas, mensageiros etc., tornaram-se grandes juristas, presidentes de federações ou empresas, entre outros.
Até quando assistiremos isto?
Como presidente do Projeto Ampliar, programa de responsabilidade social que há 21 anos profissionaliza adolescentes em situação de risco, com o apoio logístico do Secovi-SP, Sindicato da Habitação, a chancela do Senai e apoio de várias empresas e empresários, posso dar testemunho daquilo que vivencio.
Os cursos que oferecemos no Ampliar – que chamamos de “um projeto de vida” -, são gratuitos com apostilas, lanche, uniforme e uma condição: frequentar a escola regular.
Todos os que ingressam voluntariamente no Ampliar buscam se profissionalizar com um objetivo muito claro: trabalhar o mais rápido possível para ajudar a família e também custear a sonhada universidade. Ou seja, eles despertam para o estudo, almejam se capacitar para atuar no mercado formal de trabalho, seja como funcionário com carteira assinada, seja como empreendedor de seu próprio negócio.
Há 21 anos, quando o Ampliar começou numa comunidade carente na Zona Sul (a Favela Sete de Setembro), os alunos se inscreviam aos 12 anos. As mães estimulavam (melhor que estar na rua à mercê do crime organizado), pois, aos 14 anos de idade, eles já podiam entrar no mercado de trabalho.
Quando o governo proibiu isso, restaram poucas possibilidades aos jovens menos favorecidos dessa faixa etária. Muitos terminaram por ingressar no mercado marginal de trabalho. Com necessidades objetivas como comer e vestir, com a cabeça vazia de ideias construtivas, mas cheia de desejos e vontades, matriculou-se com facilidade na escola do crime. Tornaram-se “funcionários” de traficantes cruéis ou passaram a dividir a sarjeta e o cachimbo nas cracolândias, que proliferam, ignorados pela sociedade, assim como até então fez o poder público, para não enfrentar o problema.
Pode-se dizer que, tempo depois, o governo tentou compensar isso com a Lei da Aprendizagem (10.097/2000), que determina que empresas de médio e grande porte contratem jovens de 14 a 24 anos para capacitação profissional, cumprindo cotas que variam de 5% a 15% do número de funcionários efetivos qualificados.
Na prática, porém, os resultados são pífios. Burocracia, exigências como ter um profissional habilitado ao lado de cada aprendiz (em tempo integral) e incidência de encargos sociais inibem o cumprimento da lei. E continuamos na mesma: impedidos de ocupar produtivamente o seu tempo, contingente expressivo de jovens se perdem na vida.
Muitas das crianças que hoje estão no mundo das drogas são recuperáveis. Tratadas, poderiam voltar à escola, completar o ensino com cursos profissionalizantes e, a partir dos 14 anos, atuar no mercado de trabalho como aprendiz.
Não cabe aqui julgar que a atual ação militar na cracolândia está ou não correta. As opiniões são díspares. Talvez não seja a melhor forma, mas, de alguma maneira, algo está sendo feito. O assunto ganhou as manchetes e cutucou as autoridades. Cada foto ou reportagem faz com que a sociedade saia da zona de conforto e reflita: por que não foram adotadas ações mais concretas quando eram cem, não milhares, permitindo que esse mal crescesse tanto?
Diversas vezes, vi meninos de 14 anos extremamente esforçados que, não podendo trabalhar, iam à escola pela manhã, ao Ampliar à tarde e, à noite vendiam balas e salgadinhos no farol para levar algum dinheiro para casa. Se isto não é exploração infantil, o que será?
Pudesse o Ampliar ter iniciado profissionalmente aqueles meninos de 12 anos, talvez o problema da cracolândia fosse um pouco menor. Afinal, trata-se de um projeto de vida, não de morte.
(*) Maria Helena Mauad é presidente da Associação Paulista Projeto Ampliar