Depois de atravessar a tempestade perfeita, que uniu a pior crise político-econômica brasileira, com duração de cinco anos, a um grande número de quebras de contratos de compra de imóveis, os empreendedores imobiliários voltaram a respirar aliviados a partir da publicação da Lei nº 13.786 no Diário Oficial da União, em 28 de dezembro de 2018.
É ela que regulamenta os distratos – acordos bilaterais e resoluções contratuais por inadimplência –, problema que travou o mercado de incorporação e loteamentos, gerando desequilíbrio econômico, tanto para os empreendimentos quanto para os condôminos adimplentes, interferindo drasticamente na geração de emprego e renda.
“A Lei representa inúmeros avanços e protege o consumidor e o produtor de imóvel, respeitando o contrato, a transparência e o equilíbrio na relação entre ambos”, opina Caio Portugal, vice-presidente de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Secovi-SP e também presidente da Aelo (Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento).
O dirigente foi um dos principais interlocutores do setor junto ao governo. Dedicou-se, ainda, a elaborar sugestões ao Projeto de Lei transformado em legislação, em parceria com o então presidente do Secovi-SP e atual secretário de Estado da Habitação de São Paulo, Flavio Amary, e amparado por um corpo de advogados do Conselho Jurídico da entidade, composto, dentre vários nomes, por Abelardo Campoy Diaz, Marcelo Terra, Olivar Vitale e Tácito Barbosa Coelho Monteiro Filho. No final do ano passado, inclusive, esse grupo e outos membros do conselho jurídico da vice-presidência de Incorporação e Terrenos Urbanos apresentaram item por item da lei dos distratos, em evento para os associados do Sindicato da Habitação.
Regramento necessário – A atividade imobiliária é regida, basicamente, por duas leis federais: a Lei nº 4.591/1964, que trata da incorporação de condomínios edilícios, e a Lei nº 6.766/1979, que rege o parcelamento do solo urbano, os loteamentos.
Para corroborar com as relações de consumo, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990, que trouxe em seu artigo 53, no caput, a determinação de ser nula de pleno direito qualquer cláusula contratual que implicasse perda de todas as parcelas pagas por parte do adquirente. Contudo, em seu parágrafo primeiro, o CDC falava da necessidade de regulamentar os critérios objetivos do montante que poderia ser retido e devolvido em caso de rompimento contratual. “Esse dispositivo foi vetado, porque o legislador considerou, naquele momento, não ser capaz de definir os critérios para regrar a matéria”, diz Portugal.
Contestações desaguaram no Poder Judiciário, que não construiu normas claras para a devolução de valores em caso de ruptura contratual por responsabilidade do adquirente, gerando insegurança para o comprador e o empreendedor imobiliário. “Agora, foram definidos esses critérios objetivos, que regulamentam as inúmeras hipóteses de desistências de contratos”, ressalta o vice-presidente do Secovi-SP.
O que muda – Olivar Vitale, advogado do Conselho Jurídico do Secovi-SP e presidente do Ibradim (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário), faz coro às declarações de Portugal e diz que a lei de distratos nasce para trazer segurança jurídica aos envolvidos. Ele explica que as decisões divergentes no Poder Judiciário e a falta de regramento específico acabou por criar dúvidas no negócio, especialmente no que diz respeito à condição do contrato como instrumento irretratável e irrevogável versus a eventual vontade do comprador de simplesmente desistir do negócio, sem motivação. Essa desistência imotivada de compradores, muitas vezes apoiada pelo Poder Judiciário, gerou falta de capital para a conclusão das obras e arruinou o sonho da compra do imóvel de muitos bons pagadores. “Com a nova legislação, fica claro o que acontece com quem deixar de pagar as prestações da compra do imóvel e também com o empreendedor”, reforça.
De acordo com Vitale, em caso de distrato ou resolução contratual por culpa do comprador, a lei estabelece a devolução de até 25% dos valores pagos para empreendimentos de incorporação imobiliária não sujeitos ao regime de Patrimônio de Afetação, e de até 50% em caso de empreendimentos com Patrimônio de Afetação. Esses percentuais são definidos nos contratos de compra do imóvel assinados entre as partes.
No setor de loteamento, a regra é sucinta, com previsão da cláusula penal de perda pelo comprador inadimplente de até 10% do valor de contrato de venda atualizado. A corretagem, quando integrante do preço de venda e de conhecimento do consumidor, fica retida por quem a recebeu, ou seja, não será devolvida ao comprador.
Caio Portugal conta que a legislação previu um eventual desconto de obrigações acessórias decorrentes da aquisição do terreno, como o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), taxas associativas, valores referentes a consumo de água, luz e esgoto, que estejam sem pagamento. “A grande inovação fica com a fruição, que ganhou critérios objetivos de regulação”, diz o vice-presidente. Ele explica que, a partir da transmissão da posse, momento em que o comprador já pode usar o terreno, será permitido cobrar 0,75% ao mês do preço de contrato pelo período que o inadimplente ficar de posse do imóvel, até que ele o devolva ao loteador. “A lei também previu uma regra de devolução diferente das súmulas do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que determinavam a devolução em uma única parcela. Agora, é possível devolver os valores em até 12 parcelas, a partir da data do recebimento do lote pela empresa.”
Com base na lei, se o inadimplente ceder os direitos do contrato a um terceiro, o incorporador fica impedido de cobrar qualquer taxa por isso, mas pode fazer uma avaliação de crédito desse terceiro comprador. Estando tudo certo, a empresa tem de realizar o negócio.
Olivar Vitale esclarece que, na incorporação imobiliária fora do regime de Patrimônio de Afetação, a devolução de valores deve ser feita em até 180 dias contados da resolução do distrato ou da resolução do contrato. Caso o empreendimento seja optante do Patrimônio de Afetação, a devolução terá de ser feita em até 30 dias da emissão do “Habite-se”. Se a incorporadora conseguir revender a unidade devolvida, o prazo de devolução, em qualquer dos casos, passa a ser de até 30 dias da efetivação do negócio.
“Quero destacar a importância do conceito que está por traz desse regramento, e que se refere a empregar o volume de dinheiro do preço recebido na execução da obra”, diz Vitale. “Os principais agentes de uma incorporação imobiliária são o desenvolvedor e os adquirentes, e a execução da obra, por sua vez, o bem maior garantido pela Lei nº 4.591/1964. Ao permitir que o comprador, a seu bel-prazer e imotivadamente, desista da compra e deixe todo o empreendimento em situação de insegurança, com escassez de volume financeiro para a conclusão, todo o sistema sai ferido. O objetivo da lei é, justamente, proteger a conclusão e a entrega desse empreendimento.”
Ele defende a devolução do dinheiro ao desistente, mas depois da conclusão da obra. “A regra prática é o empreendedor não receber mais do que 10% ou 20% do preço durante a construção. É uma ilusão achar que a retenção do dinheiro que seria devolvido ao adquirente desistente vai prestigiar o bolso do incorporador. Os empresários só ganham dinheiro, de fato, depois da emissão do ‘Habite-se’, para edifícios, e do TVO (Termo de Verificação de Obras), para loteamentos, porque esses são os momentos de recebimento do montante de recursos do total das vendas”, ressalta Vitale.
Maturação – O texto da lei de distratos é resultado de décadas de debates sobre o assunto. “A versão final aprovada traz previsibilidade e transparência na relação de compra e venda. O maior exemplo disso é a exigência de um quadro resumo nos contratos, com a finalidade de dar clareza a inúmeras questões, como prazo de entrega do imóvel, penalidades, aplicação da fruição e possibilidade de revenda. Dessa forma, ao assinar o contrato, o cliente fica sabendo, por exemplo, que a rescisão unilateral por inadimplemento vai gerar ações penais”, diz o vice-presidente Caio Portugal. Para ele, só assim será possível mitigar, em médio prazo, os riscos da transação.
Contratos antigos não precisam ser aditados ou ajustados às novas regras. Contudo, a lei dá 30 dias para que a falta do quadro-resumo nos contratos novos seja corrigida, sob pena de desfazimento do negócio, a critério do comprador.
Portugal lembra que, de 2009 a 2011, houve uma forte valorização dos preços dos imóveis, beneficiando os compradores investidores – que mais tarde se mostraram especuladores –, e o distrato era inexistente, porque o mercado se regulava. Quando os preços deixaram de crescer, boa parte desses flippers – jargão usado no mercado financeiro para definir o investidor que aguarda a alta dos preços para vender suas ações – desistiu dos negócios imobiliários, contaminando a integralidade do sistema. Os empreendedores tiveram de devolver judicialmente valores totais, com prejuízos aos caixas tanto do empreendimento quanto das empresas. Muitas delas, inclusive, entraram em recuperação judicial e outras fecharam as portas. “Quando o Judiciário percebeu os equívocos das decisões, resolveu apoiar a regulação da matéria”, completa Vitale.
Interesse no negócio – A última coisa que uma empresa incorporadora ou loteadora quer, quando está com um empreendimento lançado no mercado, é distratar as vendas dos imóveis. Em casos extremos, quando o cliente perde a capacidade financeira de honrar o pagamento das parcelas, mas demonstra interesse em manter a compra e negociar a dívida, existe a possibilidade de o contrato ser mantido para que ele acesse, futuramente, o crédito imobiliário junto aos bancos.
O Secovi-SP, inclusive, mantém tratativas com vários agentes financeiros para que as regras de concessão de crédito sejam dinamizadas no ato da venda, ainda durante o período de lançamento e de obras, e sejam garantidas durante os três anos seguintes, prazo médio de entrega das chaves e de repasse do financiamento do saldo devedor do incorporador para o agente financeiro. Como o empreendimento imobiliário tem um longo período de maturação, muitas vezes ocorrem mudanças na forma de concessão de financiamentos bancários, inviabilizando a concessão de crédito para muitos compradores. “Isso causou inúmeros distratos”, ressalta Caio Portugal.
Até se chegar ao ponto extremo de o adquirente transferir a unidade, cedendo direitos e obrigações a um terceiro, as incorporadoras e construtoras podem facilitar essa transação. “O segmento de intermediação imobiliária poderá auxiliar esse cliente”, diz Olivar Vitale, completando que, se o novo adquirente não conseguir financiar a unidade com um banco, a incorporadora pode parcelar a dívida, aplicando juros máximos de 12% ao ano. “Não é uma obrigação da empresa, mas pode ser uma alternativa de manutenção do negócio. Nesses últimos anos de crise e de juros mais altos para o financiamento imobiliário, essa foi uma alternativa adotada por diversas incorporadoras.”
Na opinião do advogado, mesmo admitindo que o assunto é polêmico, a lei pode ser aplicada para contratos anteriormente firmados à sanção da lei, com algumas ressalvas, como, o cumprimento da exigência de quadro-resumo no contrato. “O próprio poder Judiciário terá de sanar tais dúvidas a respeito da aplicação da lei”, diz.
Tolerância – O descumprimento da data de entrega do imóvel é outro ponto de segurança jurídica trazido pela lei de distratos, que estabelece como prazo de tolerância de atraso até 180 dias da data de conclusão da obra, sem gerar penalidades para as empresas. Passados os 180 dias de tolerância, o adquirente pode escolher entre aguardar a unidade ficar pronta e receber indenização de 1% do valor pago ao mês pelo período de atraso de entrega, ou pedir a resolução do contrato pelo inadimplemento do incorporador, com direito à devolução integral dos valores pagos e corrigidos, acrescidos da multa prevista em contrato.
Os seis meses de tolerância não configuram atraso nem novidade legal, pois são adotados pelo mercado e aceitos pelo Judiciário de maneira pacificada. “Esse período é bastante razoável e necessário para a empresa atender aos inúmeros problemas que podem acontecer especialmente na reta final da conclusão de um empreendimento, como o atraso na emissão de documentos em razão de burocracias com concessionárias diversas e o Poder Público”, acrescenta Vitale.
Pela importância e o alcance da Lei de distratos, é certo que a diretoria do Secovi-SP continuará promovendo eventos e usando os seus meios de comunicação para esclarecer os associados e todo o setor representando pela entidade. “Percebemos que o setor ganhou novo ânimo com essa legislação, que deverá ser aplicada corretamente. Acredito que criaremos um processo de auto conduta e autorregulamentação, que levará a um incremento no setor, com transparência, previsibilidade, regras claras e a correta decisão da compra do imóvel por parte do consumidor. Todo o sistema tem de funcionar bem, mudando paradigmas”, conclui Caio Portugal.