Não, não olhe para o céu. Ele pode anunciar que vem chuva forte. E isso significa problema. E dos grandes.
Por certo, é isso o que dizem a si mesmas as milhares de pessoas que vivem em áreas de risco. Moram nas encostas, em topos de morros, margens de rios. Áreas fadadas a sofrer o impacto da natureza. Áreas que deveriam ser habitat apenas da vegetação que tem competência, ou raízes, para se agarrar ao solo e resistir aos temporais.
Em 2011, as chuvas na região serrana do Rio de Janeiro deixaram quase mil mortos. Foi a maior tragédia climática do Brasil, que traumatizou não apenas os habitantes de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Doeu em todos nós. E uma série de ações emergenciais – e de investimentos – foi amplamente divulgada. Isso não poderia ter acontecido novamente.
Todavia, dez anos depois, mais de 80 mil pessoas continuavam vivendo nos mesmos locais. Famílias que retornaram ou que se instalaram ali pois não tinham para onde ir.
Então, a inevitável pergunta é: por que essas famílias buscam esta solução de moradia precária e temerária?
No verão de 2022, como em todo verão, as chuvas voltaram. E ainda mais intensas. Coisas das variações climáticas, que sinalizam: serão cada vez mais fortes. Resultado: novas tragédias. Em Petrópolis e em diversas outras localidades, incluindo várias cidades de São Paulo.
Ao lado do luto, outra pergunta que não cala: até quando vamos seguir admitindo?
Na caça às bruxas, não faltam bruxas. A ineficiência da estrutura governamental, os investimentos que não foram feitos, os recursos destinados que não foram corretamente aplicados, a inoperância da defesa civil, a ineficiência da fiscalização preventiva, as criminosas invasões de áreas, a imprudência das próprias famílias, a falta de ampliação de programas habitacionais e de infraestrutura.
Se não intensificarmos as ações necessárias a partir de já, só uma certeza nos resta: ainda vamos chorar por muito tempo e sempre com medo de olhar para o céu
Tudo isso, entretanto, não é o que o problema objetivamente exige. É preciso foco na solução. No olhar cauteloso e sistêmico sobre a habitação formal. É preciso olhar a causa, não o efeito.
A carência de moradias dignas para a população em situação de vulnerabilidade nas áreas urbanas é algo antigo e perigoso. Ninguém mora em encostas porque quer. Ninguém gosta de ser vizinho do medo; de uma hora para outra, perder entes queridos ou a própria vida.
Em termos de política habitacional, a dívida do Brasil para com os brasileiros continua longe de ser quitada. É inegável que avançamos muito. Há consistentes programas em andamento – Casa Verde e Amarela (federal), Nossa Casa (estadual, e há outros), Pode Entrar (municipal) – e, certamente, várias iniciativas do gênero no País. Ocorre que todas elas parecem insuficientes. Isso porque há, também, outra causa: o empobrecimento da população. Castigadas pelo desemprego, as pessoas necessitam de programas habitacionais perenes para alcançar uma residência decente. A alternativa passa a ser alugar barraco em favela, quarto em cortiço, invadir áreas de proteção ambiental ou de risco. Quem pode se aninha com parentes e amigos ou faz coabitação (duas ou mais famílias dividindo o mesmo espaço). Quem não pode vive nas ruas (é assustador o número de pessoas em situação de rua no centro de São Paulo) ou onde ninguém quer viver (nas áreas de risco).
Mas, ainda que os programas habitacionais avancem, é desumano ver novos projetos sendo propostos para desviar os únicos recursos disponíveis para essa finalidade, o FGTS, para outros objetivos.
Um desafio adicional é incentivar legislações urbanas com regras de uso e ocupação do solo que viabilizem e incentivem a produção de habitações acessíveis em áreas com infraestrutura instalada. As famílias são expulsas das regiões centrais. Passam sacrificantes e improdutivas horas no deslocamento casa-trabalho-casa (bem dizendo, as que têm casa). São empurradas para áreas inadequadas (mananciais) e arriscadas.
Se pudéssemos oferecer residências formalmente edificadas (com a segurança que a boa engenharia garante), em locais recomendados por cartas geotécnicas (que mapeiam as áreas de risco) e com cuidados quanto à permeabilidade do solo, saneamento básico, etc., resolveríamos em grande parte as tragédias das chuvas.
Nossa, mas isso vai demorar muito! Sim, é verdade. Não há mágica. Exige tempo, entendimento e propósito. Exige concertação entre os entes governamentais, a iniciativa privada e a coletividade na formulação de caminhos para ofertar perenemente o maior número possível de novos lares. Exige que a sociedade se posicione quanto à definição de diretrizes urbanas que possam incluir os menos favorecidos, ao invés de segregá-los. Exige medidas técnicas de contenção emergencial das encostas, com tirantes de ancoragem do solo para evitar deslizamentos – um investimento alto, porém inadiável. E, mais ainda, exige austeridade com as invasões e ocupações irregulares.
Sim, levará muito tempo. Mas, se não intensificarmos as ações necessárias a partir de já, só uma certeza nos resta: ainda vamos chorar por muito tempo e sempre com medo de olhar para o céu.
Rodrigo Luna é presidente do Secovi-SP e reitor da Universidade Secovi-SP