Uma das importantes inovações trazidas com o novo Código de Processo Civil (CPC) é, sem dúvida, a criação de um procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica das empresas.

A pessoa natural é dotada de direitos e obrigações. Na Idade Média, com o fulcro de proteger o patrimônio da Igreja, separando-o do de seus membros nasceu, a personalidade jurídica. Com o passar dos tempos e com a criação de empresas, adveio a Pessoa Jurídica, que, da mesma forma que a pessoa natural (Pessoa Física), é uma entidade revestida de personalidade jurídica, portanto, de direitos e obrigações.

A personalidade jurídica veio a resultar na separação das responsabilidades daqueles que constituíram a pessoa jurídica das da própria entidade. Trata-se de importante proteção legal em vista dos riscos das operações empresariais.

Assim, como é sabido, quando uma ou mais pessoas constituem uma Pessoa Jurídica, o patrimônio desses não é confundido com o daquela(s).

Porém, tal distinção pode ensejar situações indevidas, seja para os próprios sócios seja para terceiros, como no caso de desvio de finalidade da pessoa jurídica com cometimento de fraudes, abuso ou ato ilícito.  

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, originária do direito anglo-saxão, surgiu como uma forma de flexibilização da distinção entre a responsabilidade do ente societário e seus integrantes (societas distat a singulus), a qual, por vezes, tem servido para acobertar comportamentos fraudulentos e abuso de direito. É a chamada “disregard doctrine”. Pode ser entendida como o afastamento episódico da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, com o intuito de, mediante a constrição do patrimônio de seus sócios ou administradores, possibilitar o adimplemento de dívidas assumidas pela sociedade.

Destaca-se, por oportuno, que a desconsideração da personalidade jurídica foi trazida ao nosso país em 1969 pelo saudoso professor Rubens Requião, em seu estudo pioneiro acerca do tema, intitulado “Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica” (Revista dos Tribunais, Ano 58, v. 410, p. 12/24).

Posteriormente, foi incorporada no ordenamento positivo brasileiro, nos seguintes diplomas: Código de Defesa do Consumidor (art. 28), Lei Antitruste (art. 18 da Lei nº 8.884/94), Lei do Meio Ambiente (art. 4ª da Lei nº 8.078/90) e finalmente no Código Civil de 2002, que em seu art. 50 estabelece que, “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

O atual Código de Processo Civil, de 1973, não contém qualquer regra sobre procedimento para o caso de desconsideração da personalidade jurídica de pessoas jurídicas. Assim, por anos discutiu-se muito na doutrina e nos tribunais se a mesma poderia ser aplicada por decisão singular de um juiz sem que tenha havido o devido processo legal e o respeito ao contraditório. Como se admitir que aquele que não foi parte em um processo e nem ao menos pode se defender, venha a responder com seu patrimônio individual por ações praticadas pela empresa da qual é sócio? Isso pode e deve gerar abusos em flagrante desrespeito a normas constitucionais.

Assim, o novo CPC traz em seus artigos 133 a 137 a regulamentação processual do instituto. Ele prevê a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, no intuito de regulamentar legalmente seu uso através do trâmite processual.

A norma processual que consta do novo Código é a de aplicação da teoria de forma normal ou inversa. A teoria inversa é aquela pela qual se desconsidera o patrimônio da pessoa jurídica para responsabiliza-la por ato de seu sócio ou representante. Isso ocorre normalmente em casos em que o sócio devedor de obrigações transfere seus bens para a sociedade evitando assim o pagamento.

A maior novidade contida no novo CPC, excluindo-se o fato de ter criado um regulamento próprio deste instituto, é que, agora, tal pedido poderá ser feito na própria petição inicial, não precisando de um processo em curso, como é necessário atualmente.

É claro que não basta o simples pedido para que o juiz acolha, é necessária a invocação de seu direito e uma prova robusta a favorecer seu pleito, respeitando-se, assim, o ônus da prova existente em nosso sistema jurídico, confirmando que a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser feita de uma forma corriqueira e sem verificação de seus pressupostos.

A desconsideração da personalidade jurídica pode ser requerida na inicial, como dito acima, inclusive em caráter liminar, o que denota, num primeiro momento, a possibilidade de o juiz não oportunizar a defesa. Para tanto, deve haver o que se chama de fumus boni iuris e periculum in mora, que nada mais é do que a razoabilidade do direito que se está afirmando, somado à necessidade de imediata providência a ser tomada, sob risco de dano grave ou de difícil reparação.

Por outro lado, diz o artigo 135 do novo CPC que, requerida a desconsideração da personalidade jurídica, no curso do processo, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para, no prazo de quinze dias, manifestar-se e requerer as provas cabíveis.

A partir do momento que a norma processual oportuniza o contraditório, haverá possibilidade de se demonstrar a inocorrência de fraude e que não houve abuso de uso da personalidade jurídica da sociedade empresária.

Ao finalizar o tema, o projeto do novo CPC prevê, em seu artigo 137, que sendo acolhido o pedido de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente, ou seja, todo o movimento patrimonial havido desde o início do processo, se acolhida a pretensão, será declarado nulo.

E, nesse ponto, está a particularidade que não pode ser ignorada, haja vista que, o novo CPC, no § 3º, do artigo 792, estabelece que nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar, ou seja, os efeitos da decisão que declara a desconsideração retroagem até a data da citação da empresa cuja personalidade foi desconsiderada e afeta as relações jurídicas realizadas pelos seus sócios nesse período.

Entendemos tal artigo como uma infelicidade do legislador, pois retroagir os efeitos da desconsideração à citação da empresa não respeita eventuais terceiros adquirentes de bens do sócio. Há que se respeitar a boa-fé daqueles que adquiriram bens do responsabilizado pela desconsideração e que os alienou antes mesmo de participar da relação processual.

Verifica-se que o novo CPC busca definir regras processuais para assegurar o devido processo legal, contraditório, ampla defesa e a segurança jurídica com relação à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. A nosso ver, equivoca-se ao definir que o efeito da decisão que acolhe a desconsideração retroage até a data da citação da empresa cuja personalidade foi desconsiderada.

Parece-nos um absurdo que melhor deverá ser interpretado por nossos tribunais, mas que certamente gerará muita polêmica.

Eduardo Cassio Cinelli é advogado da Cinelli Advocacia (cinelli@cinelliadvocacia.com)