A vingar o Projeto de Lei do Senado n. 29 de 2.003, ora em trâmite, será alterado o artigo 37 da Lei das Locações, restringindo as modalidades de garantias locatícias para apenas duas (caução e seguro de fiança locatícia), dentre as três atualmente existentes.

Foi mote da proposta de alteração, a alegada dificuldade encontrada pelos pretendentes a locação, quando lhes fosse exigida fiança de pessoa que seja proprietária de bens. São várias, entretanto, as ponderações que parecem pertinentes à matéria.

Observa-se de início, a questão da produção das leis é tormentosa e já mereceu estudos profundos de grandes pensadores, parecendo bastante claro que boas leis são somente aquelas que realmente atendem a demanda da sociedade e regulam coerentemente a ordem, a paz e o desenvolvimento, este não apenas econômico.

No caso da Lei das Locações, os especialistas elogiam a quase totalidade dos seus dispositivos, até porque estes recepcionaram tendências jurisprudenciais cautelosamente construídas.

É inegável: aliada à estabilização da economia, a Lei de Locações prestou-se muito bem à defesa não do locador ou do locatário, mas das locações propriamente ditas; a lei permitiu a substancial redução de ações judiciais, hoje praticamente restritas àquelas situações de inadimplemento – situações econômicas, jamais locatícias; comerciantes locatários encontraram boa proteção na Lei; existe segurança em investir na construção de imóveis para locação – aí estão os novos shopping centers, os prédios comerciais, os conjuntos habitacionais, todos esteados em contratos de locação.

Perceba-se, nesses 14 anos de vigência, quase não foi modificada a lei de locações (convenhamos, situação rara em nosso país), o que conferiu ao mercado boa e essencial segurança jurídica. A escolha da garantia locatícia preocupa o Mercado, assim compreendido o conjunto formado por milhões de locadores, locatários, administradores e operadores do direito. Hoje, a lei prevê três modalidades de garantia: caução, fiança e seguro de fiança, proibindo a respectiva acumulação.

Destaque-se: não obstante eventual preferência do Locador, o mercado atual não admite “imposições”: a garantia é eleita por consenso dos contratantes. Fira-se realmente a questão: a hipótese primordial que gera a necessidade de invocação das garantias é a falta de pagamento de alugueis, que acarreta ação de despejo e, caso não purgada a mora, redunda em posterior cobrança. Não houvesse inadimplemento, não haveria necessidade da garantia; fosse possível a rápida desocupação do imóvel (permitindo nova locação) e a rápida cobrança, restaria minimizado o problema, certamente abandonada a preocupação em foco.

Em análise das modalidades de garantia, anota-se que a caução efetivamente praticada pelo mercado é aquela em dinheiro, limitada ao valor de três aluguéis. Esta modalidade de garantia traz um problema incontornável, ao menos por ora: caso a ação judicial de despejo por falta de pagamento demore mais de três meses até a desocupação do imóvel, a garantia não será suficiente. E hoje, tais ações tramitam por pelo menos 12 meses!

Vale um registro: cerca de 30% das ações de despejo por falta de pagamento atualmente em curso na capital paulista, apontam como garantia a caução. Sabido que tramitarão por um ano, em média, e que a garantia só cobre 3 meses de aluguel, está evidenciado o prejuízo do locador, equivalente a 9 meses de aluguel.

A fiança, segunda modalidade prevista (e que seria eliminada se aprovado o Projeto em comento), é garantia tradicionalmente utilizada: em São Paulo, 57% das locações residenciais são garantidas por fiança, existindo regiões (é o caso das zonas Sul e Oeste de São Paulo) em que o percentual aproxima-se da totalidade.

Para o locador, desde que bem estudados os documentos, o patrimônio e as características do fiador, o único – e às vezes terrível – problema que surgirá, será a demora na tramitação da ação de cobrança: em São Paulo, que relativamente ao Brasil conta com uma Justiça rápida, uma ação objetivando a cobrança de alugueis poderá demorar quase dois anos.

Diga-se, a propriedade imobiliária já não é essencial para a eleição de fiador, não sendo demais recordar que a fiança é garantia pessoal, não real, a não repercutir em gravame do imóvel, portanto.

Mais que um imóvel valem hoje na aferição da idoneidade e capacidade econômica, o emprego do garantidor, suas rendas mobiliárias, a liquidez de seu patrimônio. As análises são sofisticadas (tal como ocorre, por exemplo, com os cartões de crédito, os financiamentos, os bancos), pesando uma evidência singela: a ação judicial que culmina na alienação do bem imóvel do devedor é extremamente, cansativamente morosa, sendo seu resultado econômico imune a qualquer cálculo atuarial, na verdade: ninguém opta por esse caminho, exceto em última circunstância.

Saliente-se, neste passo a legislação processual é perfeitamente coerente com as opções práticas, ao disciplinar a preferência de penhora sobre dinheiro. Só se chega à penhora de imóvel, quando procurados e não encontrados ativos mais líquidos. Não bastasse, grassam interpretações favorecendo a exoneração de fiadores em diversas hipóteses, ampliada a aplicação da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça.

A terceira modalidade de garantia, o seguro de fiança locatícia, tem sido crescentemente utilizada, dadas as evidentes vantagens para os contratantes. Porém, são encontrados óbices sérios em alguns aspectos, a tornarem a modalidade aplicada a cerca de somente 7% das locações celebradas em São Paulo: a) o prêmio é alto, oscilando entre meio e um aluguel por ano; b)a análise cadastral do pretendente à locação é rigorosa (como há, mesmo, de ser), afastando um sem número de pretendentes.

Desse brevíssimo resumo, são extraídas algumas evidências:

a) garantias locatícias só existem porque as ações judiciais conseqüentes ao inadimplemento são caras e morosas. Fosse rápido o trâmite e, certamente, o Mercado dispensaria essas garantias (veja-se o incremento nas operações de financiamento decorrentes da legislação que, em tempos idos, possibilitou a busca e apreensão de veículos, por exemplo).

b) verdadeira revolução no mercado locatício decorreria de leis que viabilizassem a antecipação da tutela (artigo 273 do Código de Processo Civil) em ações de despejo por falta de pagamento, atrelada tal antecipação, à responsabilização civil do Locador que se mostrasse litigante de má – fé;

b1) aliás, os próprios fiadores encontrariam benefício no encurtamento do trâmite das ações de despejo por falta de pagamento, porquanto resultar em diminuição de seus ônus.

c) a atual situação econômica não admite a utilização da caução, sendo certo que inúmeros pretendentes não podem depositar o equivalente a três aluguéis, inviabilizando por vezes a utilização da garantia. De resto, a modalidade é afastada pelo prejuízo evidente em caso de ação judicial;

d) o seguro de fiança locatícia é adequado para diversas situações, mas não se presta a todas as locações;

e) a fiança, a par de concedida com maior facilidade (ao contrário do seguro) e gratuitamente (ao contrário da caução), é tradicional e largamente utilizada em todo o Brasil;

f) o Mercado encontraria sensíveis benefícios na ampliação das modalidades de garantia, não na sua diminuição.

Estas as ponderações que parecem pertinentes, convindo salientar quão estimulante e benéfica à sociedade, é a ampla discussão, doutrinária e tecnicamente séria, jamais inflamada, em franco subsídio aos estudos desenvolvidos pelos poderes constituídos.