Num processo que teve sua origem na década de 1960, o Centro tradicional paulistano sofreu profundas transformações, deixando de ser o único pólo concentrador de negócios. O mercado imobiliário expandiu-se por meio da incorporação de novas áreas, com uma migração progressiva para outras regiões da cidade. Criando novas concentrações de atividades comerciais, o centro de negócios migrou, primeiramente, para a Avenida Paulista e depois para a Faria Lima, Berrini e Marginal do Pinheiros. Paralelamente às mudanças de localização dos negócios, comércio e serviços de alto padrão, consolidaram-se novos bairros de moradia para as classes alta e média que, também progressivamente, foram deixando a área central.
A partir dos anos 1980, agravou-se a tendência de desvalorização dos imóveis do Centro e, apesar da substituição de usos, muitos imóveis – especialmente salas comerciais e escritórios -, ficaram vazios. Com isso, houve também importante perda de população. Só nos últimos 20 anos, a região central – considerando os oito distritos da Subprefeitura da Sé – perdeu, aproximadamente, 230 mil moradores, o que equivale a 30% da sua população.
Mas, apesar da saída de uma série de atividades, a área continua polarizando a relação dos paulistanos com o trabalho. Ali se concentra o maior número de postos de trabalho da cidade – com uma relação de empregos por morador igual a 1,99, enquanto no município a taxa é de 0,47 -, principalmente nos distritos do centro histórico, que ainda mantêm uma forte concentração de atividades especializadas que se beneficiam de economias de aglomeração.
Morar na área central também representa uma importante estratégia de vida para uma parte significativa da população pobre da cidade. Mesmo comprometendo mais de 28% da renda com o aluguel, cerca de 16 mil famílias moram em cortiços (moradias de uso coletivo sem condições mínimas de iluminação, ventilação, segurança de estrutura e instalações elétricas), podendo o metro quadrado chegar a R$ 20,00 enquanto no mercado formal fica em torno de R$ 9,50 e R$ 13,00. Aproximadamente 53% desses moradores possuem carteira assinada, têm renda média entre cinco e seis salários mínimos e optaram pelo Centro pela proximidade do local do emprego – 55% vão a pé -, além de possibilitar o trabalho em horários não atendidos pelo transporte coletivo, bem como acesso rápido ao comércio e serviços.
Operações urbanas
Ainda em 1991, num esforço de reversão de um quadro de estagnação e acentuada degradação dessa região da cidade, foi aprovada a Lei 11.090 – Operação Urbana Anhangabaú. Tratava-se da primeira operação urbana aprovada no Município de São Paulo, tendo como objetivo a arrecadação de recursos para investimentos em obras de valorização do Centro, incentivadas com a inauguração do novo Vale do Anhangabaú.
A iniciativa consistia em incentivar e promover a revitalização do Centro por meio de operação de natureza imobiliária, coordenada pelo poder público e com a participação da iniciativa privada. Tinha como objetivos específicos: 1) incentivar o melhor aproveitamento dos imóveis não construídos ou subutilizados, garantindo a reestruturação da paisagem urbana e promovendo a intensificação de usos compatíveis com as funções do Centro; 2) promover a preservação do patrimônio histórico, cultural e artístico e a melhoria da qualidade ambiental; e, 3) ampliar os espaços de uso público, em particular os destinados à circulação de pedestres e áreas verdes. Também disponibilizou um estoque de área construída adicional de 150 mil m2, não fixando um limite para o coeficiente de aproveitamento por lote.
Nos seus três anos de vigência, nove propostas foram aprovadas: quatro de regularização de imóveis, três de reformas com ampliação de área até os limites do zoneamento e duas propostas de construções novas com aquisição de área construída adicional, que utilizaram aproximadamente 19 mil m2 de área do estoque. Com os recursos arrecadados, no entanto, foram executadas apenas pequenas intervenções de caráter meramente cosmético (recuperação de esculturas, passeios e gradis). Por ter uma abrangência restrita, a Prefeitura do Município de São Paulo, por meio da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização), continuou estudando outras propostas, com abrangência e poder de atuação maiores.
Em 1997, foi aprovada pela Câmara Municipal a Lei 12.349, denominada Operação Urbana Centro, com o objetivo específico de reverter o processo de esvaziamento da região do comércio e dos serviços destinados à população de maior poder aquisitivo. Mais do que arrecadar recursos junto à iniciativa privada para a execução de um Plano de Melhorias, essa operação passou a oferecer incentivos, alguns não onerosos, para a permanência e a atração de investidores. No seu artigo 15, a lei isentava o pagamento de contrapartida para os imóveis que quisessem usufruir seus benefícios nos primeiros 36 meses de sua implantação.
O programa de investimentos buscou qualificar urbanisticamente o Centro da cidade, de modo a estimular a sua ocupação por moradias, serviços, comércio e por órgãos da administração pública, com ênfase especial à preservação e recuperação dos imóveis tombados. Oferece grandes incentivos à construção de edifícios residenciais, de hotéis, ao remembramento dos lotes e em especial à transferência de potencial construtivo de imóveis tombados para outras regiões da cidade.
Certamente, esse foi o incentivo oferecido que obteve maior adesão do mercado imobiliário. A lei apresenta um cálculo elaborado de equivalência entre a área tombada transferida e a área a ser construída, nas diversas regiões da cidade, bem como coloca o Poder Municipal apenas como mediador entre as partes no tocante à transferência dos recursos do investidor para a recuperação arquitetônica do bem tombado. Em 2000, no entanto, o Ministério Público moveu ação pública nos moldes da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei das Operações Interligadas, que declarou inconstitucional a transferência de potencial construtivo de imóvel tombado para fora da Área Central, retirando, assim, o benefício mais importante dessa lei.
A Operação Urbana Centro também inovou ao instituir, muito antes, ainda, do determinado pelo Estatuto da Cidade, uma Comissão Executiva – composta por 14 representantes, sendo quatro da prefeitura e dez representantes da sociedade civil -, que analisa as propostas de participação na Operação Urbana, encaminhando-as à CTLU (Câmara Técnica de Legislação Urbanística) para deliberação, e que tem poder de decisão em relação à aplicação dos seus recursos.
Ações necessárias
Muito ainda precisa ser feito na área central. De acordo com o Censo 2000, 34.592 unidades domiciliares (18% do total) da área hoje estão vazias e muitas outras subutilizadas. Muito longe de representar uma solução definitiva para as necessidades de moradia da população, as freqüentes e desastrosas invasões têm servido, infelizmente, apenas como instrumento de pressão sobre o Poder Público, no sentido de desenvolver políticas sociais que garantam a permanência dessa população nessa área.
A discussão de diretrizes estratégicas para tratar do problema habitacional e da intervenção e regulação da dinâmica imobiliária no contexto da área central da cidade de São Paulo deverá passar pelo reconhecimento da complexidade e das tensões envolvidas nesse campo, além do desenvolvimento de ações voltadas para as necessidades de diferentes setores envolvidos.
Entre os moradores ligados à área, há os que dependem de políticas sociais de habitação para ter garantido o seu direito à moradia; os que dispõem de condições favoráveis no mercado e precisam de políticas de crédito voltadas para suas necessidades, além daqueles de estratos médios e altos que é importante manter ou atrair para o Centro. Nesse sentido, as ações propostas deverão levar em conta a necessidade de respeitar e potencializar as oportunidades abertas pelos usos existentes hoje na região, já que são eles que constituem o conteúdo social fundamental que pode dar sustentação ao processo de requalificação. Além disso, as propostas devem ser elaboradas compreendendo que o Centro, assim como a metrópole, constitui um mercado imobiliário multiestratificado, que atende a níveis de renda e condições de investimento muito diferentes entre si, lidando, muitas vezes, com interesses conflitantes ou mesmo inconciliáveis.
É estratégico para o sucesso efetivo de qualquer programa de requalificação o fortalecimento do uso da região central como local de moradia. Além de abrir boas oportunidades para o desenvolvimento de políticas habitacionais, os efeitos mais interessantes estão no impacto gerado na dinâmica social da área. O aumento do número de residentes ali pode propiciar o desenvolvimento de novas sociabilidades, aumentando o uso das ruas e a freqüência a lugares públicos. Deve significar uma ampliação do horário em que as pessoas circulam pelas ruas, não estando mais atrelado exclusivamente ao horário comercial, possibilitando o desenvolvimento de outros serviços e diminuição da sensação de insegurança para quem anda à noite. A fixação de moradores também pode repercutir por meio do aquecimento do comércio local e criação de demanda para as atividades culturais existentes. Para a capital paulistana, o aumento da moradia no Centro traria as vantagens de diminuir a demanda por transporte, otimizar os serviços urbanos já instalados e ter efeitos sobre a desaceleração da expansão da cidade. Para tudo isso, é fundamental a união de esforços da iniciativa privada, governo e sociedade civil.