Samuel Beckett, um dos grandes dramaturgos do século XX, é autor do clássico “Esperando Godot”. A peça focaliza a espera absurda e impotente de seus personagens, que aguardam a chegada de Godot, sem que em momento algum seja possível saber quem (ou o que) é ele, e finalmente receber a notícia de que ele não vem.
Em se tratando do sonho da casa própria, muitas famílias de baixa renda continuam esperando. Ficam na expectativa de condições adequadas de adquirir seu primeiro bem, e tudo perfeitamente documentado e regularizado (única forma de sair da submoradia, das favelas e cortiços, das áreas de risco, das ocupações clandestinas).
Vira e mexe surge uma luz no fim do túnel. Um, digamos assim, espectro de Godot se prenuncia. Mas logo vem a certeza: ainda não é desta vez; a espera vai ter de prosseguir.
É possível que quando da publicação deste artigo, Godot tenha finalmente mandado avisar que vai chegar. Falo do pacote habitacional que está sendo aguardado ansiosamente desde o início deste ano. Uma expectativa que envolve não apenas aqueles que sonham com a moradia, como também os que são responsáveis por sua produção (incorporadores e construtores), angustiados que estão com a possibilidade de reduzir suas atividades e (inevitável) ter de demitir.
Tudo indica que essa espera poderá valer à pena. É meta do presidente Lula produzir um milhão de habitações de interesse social nos próximos dois anos. Um número tão expressivo que já existe quem fale no “BNH do Lula”.
A ‘engenharia’ desse processo não é simples. É preciso definir linhas de recursos e financiamentos (aí também envolvendo bancos privados) e reduzir a carga tributária que incide sobre a moradia popular. O pobre paga de impostos o mesmo que os mais favorecidos. Certo seria zerar a alíquota de impostos sobre materiais de construção e outros utilizados em habitações de interesse social.
Para se ter uma idéia, uma residência de R$ 50 mil poderia custar ao comprador final R$ 35 mil se dela fosse retirado o peso dos tributos. Essa diferença colocaria em condições de aquisição milhares de famílias, aptas a obter um financiamento condizente com sua capacidade de pagamento.
Há, ainda, outros problemas a resolver, como a oferta de terrenos com um mínimo de infra-estrutura, as necessárias mudanças de legislação, os prazos excessivamente longos para aprovação de licenças dos projetos pelos órgãos municipais, a regularização fundiária, e mesmo a desoneração das prestações da casa própria, cujos juros poderiam ser abatidos do Imposto de Renda (antigo pleito do Secovi-SP que, finalmente, começa a ser estudado seriamente pelo governo).
Adicione-se que ainda está clara a disposição governamental de utilizar recursos orçamentários no combate ao déficit de moradias. Não se pode resolver a questão da habitação de interesse social sem subsídios. Assim é em todo mundo. Portanto, tal sinalização será decisiva para que a ‘chegada de Godot’ seja vislumbrada de forma mais tangível, animando governos estaduais e municipais, empreendedores e agentes financeiros. É o toque de realidade que está faltando.
É bom que governo e representantes da sociedade civil – como é o caso do Secovi-SP – discutam à exaustão e consigam encontrar o caminho correto. Uma diretriz firme, que possa ser complementada ao longo do tempo, pois, como se sabe, a questão da habitação não se resolve no curto prazo, mas os efeitos de sua solução são perenes.
Afinal, quem já esperou tanto, pode aguentar um pouco mais. Difícil é saber se uma nova frustração será facilmente absorvida.
Ademais, o quanto se poderá financiar em um ou dois anos, se um milhão ou 300 mil, torna-se, em verdade, uma questão menor. O que realmente importa é começar um programa habitacional consistente, que se possa projetar no horizonte, com viabilidade técnica, legal e econômica.
E, no que se refere à classe média, é importante salientar que ela não está esquecida. Há vários itens em análise, dentre os quais o alongamento dos contratos – de 20 para 30 anos – e a possibilidade de financiamento correspondente a 100% do valor do imóvel.
Tudo está sendo costurado para que ninguém mais tenha de ficar “esperando Godot”. Resta ter fé e, finalmente, ver acontecer.