Membro do Conselho Jurídico do Secovi-SP, Rodrigo Bicalho destaca em artigo que a preservação da memória dos centros urbanos deve atender a avaliações criteriosas e fundamentadas, além de requisitos legais

 

Rodrigo Bicalho – advogado, membro dos Conselhos Jurídicos do Secovi-SP e do SindusCon-SP

O debate sobre urbanismo e a forma de organizar as cidades tem sido cada vez mais presente, como no caso da revisão do Plano Diretor Estratégico e, agora, da Lei de Zoneamento de São Paulo. Este interesse é salutar e consiste numa importante forma de exercer a cidadania.

Entre as questões relevantes neste debate está um tema que durante muito tempo teve pouca atenção: a preservação do patrimônio histórico e cultural.

Na cidade de São Paulo, a preservação do patrimônio conta com a atenção e o cuidado do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp), amparado pelo Departamento do Patrimônio Histórico. Já no âmbito estadual, a competência é do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). A proteção se dá por meio do tombamento, que é a determinação de que um bem específico seja preservado, impedindo-se sua demolição ou a alteração de suas características.

O tombamento, porém, estabelece uma severa restrição à propriedade, pois impede que o proprietário de um imóvel possa dele livremente dispor; ao contrário, passa a ter obrigação de preservá-lo.

Além disso, os imóveis vizinhos, na chamada área envoltória, podem também sofrer limitações construtivas. Justamente por isso, o tombamento deve ser tratado com todo cuidado, dentro de critérios técnicos rigorosos, sob pena de se cometerem graves injustiças e, ainda, por assim dizer, banalizar sua prática.

Entretanto, nos últimos anos têm sido observados em diversas regiões da cidade movimentos que requerem o tombamento de edificações, ou conjuntos de edificações, alegando relevância histórica, mas que claramente são uma reação de vizinhos visando a impedir novas construções em seu entorno. Nesse sentido, não se trata de interesse público, mas, sim, de interesse privado e egoístico de quem, já morando num prédio, não quer que haja outros ao lado.

Esse fenômeno pode ser ilustrado com a recente Resolução 11/2023 do Conpresp, que acolheu a abertura de tombamento de centenas de imóveis nos bairros de Cerqueira César e Pinheiros, distribuídos em diversas quadras, apesar da ausência de estudos consistentes que embasassem o pedido.

É preciso considerar que a simples abertura do processo, que não tem prazo para ser concluído, já impede a modificação do imóvel.

Outra situação complexa é a pretensão de tombamento não de imóveis individualmente considerados, mas de bairros, sob a alegação de preservação de sua memória, de que são exemplos Campos Elísios, parte da Vila Mariana ou o Bexiga. Ora, muitos bairros poderiam invocar que sua paisagem tradicional está sendo alterada, o que é de certa forma inevitável e faz parte do crescimento de uma cidade dinâmica, com enorme demanda por novas moradias.

Ao congelar bairros inteiros ou diversas quadras, ocorre verdadeira invasão de competência da Câmara Municipal, a quem cabe definir o zoneamento da cidade. É no mínimo uma incoerência que leis como o Plano Diretor ou a Lei de Uso e Ocupação do Solo precisem ser aprovados por quórum qualificado dos vereadores eleitos pelo povo, enquanto “bairros, quadras ou manchas urbanas” da cidade possam ser tombados numa reunião com a presença de seis integrantes do conselho, por requisição de um único cidadão. Não é legítimo utilizar-se do tombamento sob o pretexto de preservação, quando o intuito é impedir a aplicação das normas urbanísticas aprovadas no processo legislativo ou a edificação de novas moradias.

Por fim, é importante também mencionar as crescentes tentativas de “tombamento de uso”, nem sequer previsto na legislação. Trata-se do intuito de tombar a atividade praticada num determinado imóvel, como um bar, um teatro ou um cinema, impedindo ao proprietário de dar outro aproveitamento à sua propriedade, mesmo que o imóvel em si não tenha valor cultural. Normalmente, é uma medida que interessa mais aos locatários do que propriamente aos munícipes.

Não se põe em dúvida a importância do patrimônio cultural, histórico, arquitetônico que o Brasil, infelizmente, não tem tradição de defender. A preservação da memória dos centros urbanos é um bem valioso e merece ser incentivada, mas sua prática deve atender a avaliações criteriosas e fundamentadas, bem como aos requisitos legais.

A questão do tombamento traz sérios reflexos não apenas para os proprietários atingidos, mas também para a cidade, porque o titular de um imóvel afetado pode obter indenização advinda do erário. Além disso, ao impedir a construção de novas habitações, de comércio, escolas e outras edificações, a cidade como um todo está sendo prejudicada.

É preciso que os órgãos de preservação tenham especial cuidado e celeridade na análise dos casos, separando o joio do trigo, no melhor interesse público.

 

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo de 29/12/2023 (Espaço Aberto)