Democracia é o termo que caracteriza o regime político contemporâneo da maioria dos países ocidentais e que, literalmente, significa “o governo do povo”.
O conceito veio de longe. Surgiu nas cidades-Estado da Grécia antiga, durante o primeiro milênio antes de Cristo, consolidando-se no auge político da cidade de Atenas e classificada na obra Política , de Aristóteles, dentre as três formas possíveis de governo: a democracia (governo de muitos) se distingue da monarquia (governo de um só) e da aristocracia (governo dos nobres).
Na Idade Média, época da história geral que se inicia no século V, logo após a queda do Império Romano do Ocidente, e termina no século XV, o termo ficou esquecido. Foi um período marcado pela concentração do poder nas mãos de monarcas e pelo grande controle da Igreja Católica, influente não apenas na religião, mas também na sociedade medieval.
Por volta do século 18, quando eclodiram as revoluções burguesas no mundo ocidental, é que a democracia volta à baila, ganhando maior propulsão após as duas guerras mundiais.
Relembrar isso não é mero exercício de aula de História. Tem que ver com muito do que está acontecendo com a democracia em diversos países, inclusive o Brasil.
Assistimos a um perigoso processo de fragmentação das premissas democráticas. É como se houvesse uma espécie de tergiversação do termo democracia por alguns, cada qual bordejando conforme conveniências de momento.
O Brasil e o mundo precisam trabalhar para reafirmar a democracia. Revisitar seus valores e suas premissas. Enfim, reerguê-la para que permaneça como principal instrumento das sociedades livres.
Essa manobra, que enseja questionamentos inoportunos e desnecessários, se constitui em verdadeiro desserviço à democracia. Surgem ruídos nas relações entre as instituições, em detrimento do absoluto e imprescindível respeito que deve haver entre elas.
No Brasil, os Poderes vêm se estranhando. E não é de hoje. Esses atritos respingam para todo lado. Afetam todos nós, indistintamente. Atingem a economia, trazendo enorme insegurança quanto à tomada de decisão, gerando profunda crise de confiança.
É o que se vê, por exemplo, no questionamento a leis democraticamente aprovadas e promulgadas. Na Grécia antiga, quando o povo se reunia nas ágoras para debater e, por maioria, definir alguma coisa, as minorias podiam até não gostar, mas acatavam, atendiam às deliberações.
Por aqui, hoje e cada vez mais, legislações são alvo de sistêmicos questionamentos. Liminares são concedidas sem ponderada reflexão sobre suas consequências. Atividades produtivas são estancadas. No setor imobiliário, obras legalmente aprovadas são recorrentemente embargadas para, anos depois, decisão maior concluir que podem seguir, posto que dentro das leis que a autorizaram. Porém, sem qualquer tipo de ressarcimento financeiro ou moral.
Nos mais diversos campos, a chamada judicialização vem criando entraves ao crescimento econômico. Investimentos são inibidos, quando não simplesmente abortados. E mesmo agora, quando o conflito Rússia-Ucrânia vem induzindo o capital mundial a buscar portos menos voláteis, o Brasil não está no cardápio de opções, como poderia estar. Que garantias pode oferecer uma nação onde leis em vigor são frequentemente questionadas?
A fragmentação da democracia também alcança um de seus maiores símbolos: o voto. A relativização de premissas democráticas impede que a democracia se afirme positivamente.
O Brasil tem nada menos que 32 partidos políticos legalizados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conforme dados de fevereiro deste ano. Se considerarmos a linha de afinidade ideológica, eles poderiam ser três ou quatro. Mas, se consideramos que dentro de cada um deles há alas divergentes, teríamos quase uma centena!
Isso talvez responda por que chegamos às eleições de 2022 com um tímido leque de opções e, até o momento, sem uma terceira via definida. É certo que, até as eleições, muito pode acontecer. É a hora dos “fatos novos” – e também dos factoides. Mas, na cabeça do eleitor, fica cada vez mais difícil de identificar em quem, ou no quê, ele irá votar.
Vem, então, o voto no “menos pior”, situação que se evidenciou nas recentes eleições realizadas na França. Será que Emmanuel Macron foi vontade ou necessidade para manter o país mais “ao centro” e conter a direita radical de Marine Le Pen?
E nós, brasileiros, o que vamos escolher? Será que vamos ponderar o valor da democracia em nossa decisão?
E de que tipo de democracia estamos falando? Será aquela que o mundo ocidental considera como o regime político mais eficaz para promover maior liberdade e direitos para os cidadãos com o mínimo de abuso do poder político?
Difícil resposta. De afirmativo, mesmo, só o fato de que a alternativa que resta são os regimes totalitários, radicais ou autoritários, todos eles dominadores e supressores de direitos e liberdades, impondo, cedo ou tarde, pesada conta aos cidadãos. Como disse Winston Churchill, “a democracia é o pior dos regimes políticos, à exceção de todos os outros que foram tentados”.
Qual, então, a solução? O Brasil e o mundo precisam trabalhar para reafirmar a democracia. Revisitar seus valores e suas premissas. Enfim, reerguê-la para que permaneça como principal instrumento das sociedades livres. Uma tarefa para homens e mulheres que, para além de si mesmos, na política ou fora dela, decidam agir pelo bem comum.
Basilio Jafet é vice-presidente de Relações Institucionais do Secovi-SP