Dados recentes da Fundação Getúlio Vargas (FGV), calculados em 2015, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apontam que o Brasil tem um déficit habitacional de 7,757 milhões de moradias. Diminuir este número não é tarefa fácil e requer muito trabalho da iniciativa privada, segurança jurídica para empresários e agentes financeiros, e, principalmente, vontade política do poder público. Mais do que tecnologia construtiva para produzir em escala, e linhas de financiamento adequadas para atender empreendedores e compradores, é necessário preservar a destinação do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) no atendimento da necessidade habitacional de famílias de baixa renda.
Somente setores produtivos autorizados pela Lei nº 8.036/1990 podem acessar os recursos do FGTS para promover habitação, saneamento e mobilidade (infraestrutura urbana) – direitos garantidos na Constituição Federal de 1988. Mudanças nas regras de destinação devem ser submetidas, obrigatoriamente, à análise e aprovação do Conselho Curador do FGTS, que é composto por 12 representantes da sociedade civil e por 12 membros do governo federal.
A despeito dessa prerrogativa, tramitam inúmeros projetos de lei no Congresso Nacional, que buscam liberalizar o acesso ao Fundo de Garantia para fins totalmente contrários aos definidos legalmente, alterando sua função social. O mais recente exemplo é o Projeto de Lei 392/2016, da senadora Rose de Freitas (MDB/ES), que visa permitir ao trabalhador que pedir demissão sacar integralmente os recursos de sua conta vinculada. No mês de maio, o PL foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal em caráter terminativo, mas o líder do governo no Senado, o senador Romero Jucá (MDB-RR), evitou que a proposta seguisse imediatamente para a Câmara dos Deputados e, agora, será analisada em plenário, por todos os senadores da Casa.
Segurança – O trabalhador só pode acessar os recursos do FGTS em casos bastante específicos, como demissão injustificada, aposentadoria, compra do imóvel, perda da residência em virtude de desastres naturais e estado de calamidade pública, morte ou doenças graves (HIV e neoplasia malígna do trabalhador ou dependente), dentre outras. Recentemente, a reforma trabalhista passou a permitir o saque de 80% dos recursos do Fundo em casos de demissão acordada entre empregado e patrão.
Para o representante do Conselho Curador do FGTS pela CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), Abelardo Campoy Diaz, a aprovação e liberação de grandes orçamentos para o financiamento à habitação de interesse social, saneamento e infraestrutura só foram possíveis até agora em virtude do respeito à manutenção das regras de destinação do Fundo. Para este ano, por exemplo, serão alocados do FGTS R$ 85,5 bilhões, com previsões de investimentos futuros de R$ 81,5 bilhões anuais até 2021.
“Esse tipo de PL é uma temeridade para todos. Ainda não dá para avaliar o tamanho do estrago nem estabelecer um prognóstico de saques”, opina Campoy Diaz. Ao debater a permissão de acesso livre aos recursos do FGTS por parte do trabalhador, deve-se recordar de recente medida do governo federal que, em 2017, liberou quase R$ 50 bilhões de contas inativas. Apesar de a decisão ter sido considerada acertada, porque o momento interno do Brasil pedia incentivo à macroeconômica e esse dinheiro ajudou a diminuir o endividamento das famílias, a liberação influenciou na aprovação de um orçamento mais conservador para este ano.
Decisões como esta levam os empresários a defenderem a mesma opinião: não se pode ter o FGTS como fonte inesgotável de recursos para solucionar quaisquer males financeiros ou socorrer a falta de capital para estimular o consumo.
“Foi o conjunto de recursos do FGTS e da caderneta de poupança que permitiram ao Brasil deixar de ser um país rural para ser um país urbano. A destinação dos recursos do Fundo para habitação, saneamento e infraestrutura faz parte de uma política de desenvolvimento que se mostrou acertada durante décadas e sem a qual não teríamos criado o programa Minha Casa, Minha Vida, que permitiu a milhares de famílias morarem com dignidade desde a sua criação, em 2009”, enfatiza Celso Petrucci, economista-chefe do Secovi-SP e também presidente da Comissão da Indústria Imobiliária da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CII-CBIC).
Por meio desta política mencionada por Petrucci, dos R$ 570 bilhões em estoque na caderneta de poupança em 2017, R$ 43,1 bilhões foram para o crédito imobiliário, ao passo que o FGTS financiou, no mesmo período, R$ 59,3 bilhões, e do orçamento de R$ R$ 85,5 bilhões do Fundo aprovado pelo Conselho Curador para este ano, R$ 69,5 bilhões irão para habitação e os R$ 6,8 bilhões restantes serão investidos em saneamento básico e mobilidade.
Analisando esses números, fica evidente que aumentar o leque de possibilidades de saques dos recursos do FGTS é deixar vulnerável a fonte e, por conseguinte, impedir a aquisição de moradias dignas por milhões de famílias dependentes de crédito com taxa de juros acessíveis. “Temos de manter a vigilância, porque isso não é bom nem para o trabalhador nem para o País”, enfatiza Petrucci.
Rico dinheirinho – Em ativos totais, o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) acumula hoje R$ 1,06 trilhão, resultantes da soma dos R$ 497,7 bilhões do FGTS, e de R$ 563,7 bilhões do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). O Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), por sua vez, tem em carteira o total de R$ 257 bilhões, equivalentes à soma de R$ 76,3 bilhões de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e de R$ 183,3 bilhões das Letras de Crédito Imobiliário (LCI).
Boa parte desses montantes permitiu o excepcional crescimento da carteira de crédito habitacional com recursos do SFH na última década. Isso fica claro em estudo que está sendo concluído pela doutora em Arquitetura e Planejamento Urbano, Claudia Magalhães Eloy, da Magalhães & Eloy Consultoria e Assessoria, e que foi apresentado durante o 90º Enic (Encontro Nacional da Indústria da Construção), realizado entre os dias 16 e 18 de maio, em Florianópolis, Santa Catarina.
De acordo com o estudo, em 2002, a carteira de crédito habitacional do Fundo correspondia a apenas 18% dos ativos totais e, em 2017, passou a equivaler a 55%. O SBPE seguiu a mesma linha, com a diferença que, no FGTS, os recursos dos trabalhadores celetistas são depositados em fundo único, com capacidade de prover investimentos, auferir renda e internalizá-la, ampliando a capacidade do Fundo como fonte de financiamento.
Por fazer parte, compulsoriamente, dos contratos de trabalho regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o FGTS tem impressionante potencial de arrecadação. Ele somou, conforme apurado no estudo, aproximadamente R$ 1,5 trilhão em contas vinculadas desde 2002. O volume de arrecadação anual, de 2002 a 2014, representou um crescimento real de 135%, enquanto o saldo nas contas vinculadas foi de 88%. Com a crise macroeconômica e o alto desemprego, no final de 2016 observou-se queda real de 3,3% na arrecadação e de 5,2% no saldo das contas vinculadas.
Em 2017, a arrecadação líquida do Fundo ficou negativa pela primeira vez na série estudada, com um déficit de R$ 44,6 bilhões, quando se contabiliza os R$ 49,5 bilhões excepcionalmente sacados de contas inativas.
Fundo social – O estudo desenvolvido pela especialista destaca a importância da carteira de crédito habitacional para o próprio FGTS durante o período compreendido entre os anos de 2012 e 2017, quando somaram receitas líquidas com o spread cobrado nos empréstimos de R$ 11,8 bilhões, após descontados os subsídios. Com isso, conclui-se que, além de cumprir seu objetivo social de prover habitação de interesse social, mesmo concedendo subsídios, a liberação de empréstimos é uma operação rentável para o FGTS.
Em sua análise, Claudia diz que, além das alterações efetuadas na regulamentação do Fundo – liberação dos saques das contas inativas e distribuição de 50% dos lucros –; introdução, pela reforma trabalhista de nova modalidade de demissão por acordo com direito a 80% de saque; e a trajetória de diversificação das aplicações em títulos e valores mobiliários, notadamente o Fundo de Investimento do FGTS (FIFGTS) e o significativo crescimento das aquisições de CRI, constituem fatores capazes de comprometer o seu desempenho no financiamento habitacional.
Ela ressalta que a importância estratégica do FGTS para a habitação não deve ser subestimada. “Tampouco é razoável superestimar o seu potencial a fim de acomodar tantos e tão diversos interesses. Analisar e reposicionar o Fundo são tarefas que se impõem como necessárias e urgentes neste momento, para que se possa seguir ampliando o acesso à habitação de maneira sustentável.”
Dependência – O crescimento exponencial do crédito imobiliário brasileiro dos últimos dez anos foi impulsionado, sem dúvida, pelo aumento do emprego, por uma condição econômica interna robusta e pelo consumo. O cenário macroeconômico positivo capacitou ainda mais o FGTS como fonte de financiamento habitacional e permitiu a criação do Minha Casa, Minha, em 2009, programa habitacional com capacidade de ser alçado à Política de Estado de Habitação. Contudo, ele é totalmente dependente dos recursos do Fundo de Garantia.
Afora isso, o Minha Casa, Minha Vida comprovou sua enorme capacidade de atender a demanda popular, e isso motiva o setor imobiliário a condenar qualquer possível intenção de desvirtuamento de uso dos recursos do FGTS ou até mesmo de adoção de medidas populistas que podem servir de plataforma em ano eleitoral. “Se hoje o déficit habitacional é da ordem de 7,7 milhões de moradias, o crescimento da demanda é de 1,3 milhão de unidades, e só estamos produzindo em torno de 600 mil imóveis por ano, não estamos conseguindo nem atender o crescimento vegetativo nem combater o déficit. Se não preservamos para o crédito habitacional a destinação da mais acessível fonte de recursos operante, e combater propostas como a deste PL, só haverá piora da condição da moradia e do problema social brasileiro”, assevera Rodrigo Luna, vice-presidente de Habitação Econômica do Secovi-SP.
Apesar de favorável à criação de novas fontes de recursos para que o setor de habitação popular quebre essa dependência do FGTS, Luna afirma que este momento ainda não chegou. “É enorme o risco de não ter recursos para financiar habitação de interesse social. Muitas vezes, os congressistas olham somente um lado da questão, que deve ser analisada de forma ampla, inclusive sob o ponto de vista das consequências danosas ao trabalhador que busca realizar o sonho da casa própria”, destaca o dirigente do Sindicato da Habitação.
Para ele, o PL 392/2016 é uma verdadeira temeridade à solução habitacional do País e pode destruir todo o trabalho de inclusão social e garantia de acesso à moradia proporcionado pelo setor imobiliário nacional na última década, com o Minha Casa, Minha Vida. “Mesmo com todas as críticas ao programa, ele foi o caminho para a contratação de mais de cinco milhões de habitações de interesse social. Se, mesmo com esse resultado, o déficit habitacional ainda é enorme, imagina se não tivéssemos produzido essas moradias? O problema, que é gravíssimo, poderia ter se transformado em caos social”, opina Luna.
Deve-se destacar que a moradia é um direito constitucional, garantido pela Constituição Federal de 1988. “O FGTS faz parte de uma política de governo para atender famílias de mais baixa renda. Acabar com ela, sem ter outra melhor para colocar no lugar, sabendo que cada vez mais os recursos do Tesouro são escassos para investir socialmente, é impedir o combate ao déficit habitacional”, diz Petrucci.
Para abrir mão desse tipo de política habitacional, são necessárias profundas mudanças sociais, políticas e econômicas. “Não existe varinha mágica capaz de acabar com o direcionamento de recursos do FGTS e também do SBPE e, mesmo assim, manter a produção de habitação para famílias de baixa renda e de classe média. Quando houver estabilidade econômica, quando for autorizado o financiamento com TP (Tabela Price) e com índice de preço, a fim de criar lastro para a emissão da LIG (Letra Imobiliária Garantida), talvez possamos acabar com a destinação compulsória de funding. Fazer isso agora é parar a indústria da construção civil deste País. Essa reflexão tem de ser feita por todos”, destaca o presidente da CII-CBIC.
Liquidez – Na visão dos empresários da construção civil e imobiliária, o governo, seja ele qual for, tem de deixar de lado essa visão de que o FGTS pode servir de porta de saída de dinheiro barato para aquecer a economia em curto prazo.
Afinal, não fosse a administração cuidadosa do Conselho Curador e a gestão responsável da Caixa Econômica Federal, o FGTS não teria se sustentando por tanto tempo nem teria concedido R$ 300 bilhões em financiamentos, desde a sua criação. Isso se deve porque, tal e qual no SBPE, os valores emprestados retornam e as operações apresentam baixa inadimplência. “Entretanto, diante do surgimento de possibilidades descontroladas de saque, certamente a liquidez do Fundo será prejudicada, e ele vai deixar de ser um benefício, uma segurança em uma possível situação de desemprego. Mais do que isso, vai deixar de cumprir sua função social de prover habitação, saneamento e infraestrutura urbana”, conclui Petrucci.
Sem dúvida, o melhor dos mundos seria poder abrir mão do crédito direcionado para habitação, os empresários poderem contar com mais fontes de funding e atuar em um ambiente financeiro mais competitivo, com ampla diversidade de agentes financeiros interessados e especializados em crédito habitacional. Entretanto, para os especialistas, o Brasil está bastante distante de um cenário tão positivo, e acabar com o dinheiro carimbado, seja do FGTS ou do SBPE, além de medida inadequada, é profundamente arriscada.
“Quando pudermos manter uma taxa nominal Selic de 5% a 6% a longo prazo, que permita a prática de taxas de juros no financiamento habitacional de no máximo 8% ao ano, será possível avançar para um sistema menos regulamentado”, observa Luna.
O vice-presidente do Secovi-SP elenca outras tantas conquistas a serem alcançadas a fim de deixar o FGTS livre de suas destinações: criar excelentes condições macroeconômicas e manter o equilíbrio fiscal de longo prazo. “Se estivéssemos falando de um Brasil com manutenção da taxa de juros a 5%, inflação abaixo da meta e controlada por 30 anos, índices de financiamento de até 7% ao ano, no máximo, que é o quanto o consumidor aguenta pagar, poderíamos pensar em trilhar os mesmos caminhos de outros países com estabilidade. Enquanto não tivermos como garantir esses fatores, alguns mercados terão de permanecer induzidos. Sem isso, não se produz habitação de interesse social. O direcionamento só acontece porque temos alta volatilidade e inconstância”, destaca Luna.
Direcionamento – O possível fim do direcionamento de recursos do SBPE dificultará a previsibilidade da oferta de crédito, um dos principais componentes para o planejamento financeiro das empresas de construção civil, uma vez que o ciclo de produção vai de médio a longo prazo. Ele não apenas garante a oferta de crédito em volume mínimo frente aos recursos quase sempre crescentes da poupança, como empresta dinheiro a taxas de juros tabelados, o que amplia o acesso de famílias ao financiamento.
Simulações realizadas em 2017 pelo escritório Magalhães Eloy e Bottura Paiva, e divulgados por Claudia Eloy, demonstram que a taxa de juros é o principal elemento definidor do acesso ao crédito. Ainda que o prazo e o sistema de amortização contribuam para ampliar esse acesso – prazos mais longos e Tabela Price em lugar do SAC (Sistema de Amortização Constante) –, seus efeitos não compensam as elevações na taxa de juros.
Acompanhe o raciocínio: um crédito ofertado à taxa de juros média de 8,6%, com prazo médio de 130 meses e sistema de amortização SAC seria, hipoteticamente, acessível para aproximadamente 7,6 milhões de famílias, que estariam capacitadas a contratar um financiamento de R$ 140 mil, com comprometimento de renda de 25%. Dentro dessas mesmas condições, se a taxa de juros for elevada para 14% e o prazo ampliado para 260 meses, o mesmo valor de financiamento seria acessível para apenas 3,9 milhões de famílias.
A transição, no financiamento imobiliário, de taxas reguladas e indexadas pela TR para taxas referenciadas no mercado torna o crédito habitacional menos acessível e mais vulnerável à inadimplência, conforme o exemplo apresentado. Crédito de longo prazo feito a taxas flutuantes, em uma economia sujeita à volatilidade de taxas, pode resultar em uma enorme crise imobiliária, como a enfrentada pelo setor no tempo do BNH (Banco Nacional de Habitação), cuja solução foi se socorrer do FCVS (Fundo de Compensação das Variações Salariais), que criou esqueletos para a sociedade superior a R$ 100 bilhões.
“A saída é equilibrar as contas públicas e o déficit fiscal. O governo tem de arrecadar mais do que gasta para poder praticar políticas de juros condizentes com outros países desenvolvidos. A partir daí, tudo passa a ser possível. Temos de equilibrar as contas no instante zero”, recomenda Luna.
Para Petrucci, que foi conselheiro do Conselho Curador do FGTS, o FGTS é tão importante quanto o Tesouro Nacional. “É certo que o mercado não pode ficar o resto da vida refém dos recursos do Fundo e da poupança para financiar a produção e aquisição da moradia. Precisamos começar a praticar outras modalidades, como fazer financiamentos com índices de preços. Contudo, até chegar o momento de prescindir do direcionamento, temos de pensar em uma transição e ainda manter as finalidades precípuas do FGTS. Certamente, vai chegar o tempo em que não precisaremos de recursos carimbados. Mas esse tempo não é agora”, enfatiza.
Reportagem de Shirley Valentin
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