“Quando uma sociedade e, mesmo, uma civilização se desencanta com seus próprios princípios, quando ela começa a não mais neles crer, quando os relativiza por razões culturais, políticas ou outras, ela abre uma brecha em que se inserem ações que visam a destruí-la a partir de um campo propício de desenvolvimento. Se, por exemplo, uma sociedade começa a relativizar o princípio da propriedade privada, por razões sociais ou raciais, ela abre o caminho para que um princípio cesse de ser um princípio, tornando-se um valor relativo que pode ser contestado por todos.”
Assim pondera o filósofo e professor Denis Rosenfield na obra Reflexões sobre o direito à propriedade, por ele publicada em 2008, e que reafirma o artigo 5.º da Constituição federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”.
De 2008 para cá, o respeito ao direito de propriedade, e de liberdade, parecia ser premissa pacificada. Afinal, na grande maioria das vezes, a aquisição de uma propriedade urbana ou rural não é fruto do acaso. É conquista decorrente de suor e trabalho. Uma vitória que não pode ser simplesmente suprimida, ao menos em países orientados pelas premissas da democracia. Daí a afirmação do direito de propriedade como direito fundamental ser encontrada em diversos textos constitucionais e tratados internacionais.
A ideia de que essa matéria estaria por aqui pacificada, ainda que reste maior nitidez do que seja “função social” da propriedade, decorre de decisões emanadas pela Justiça no tocante a ações de reintegração de posse de terrenos ilegalmente ocupados e que, assim como as residências, têm legítimos proprietários.
Os magistrados parecem ter compreendido que a casa ou apartamento têm por função social dar abrigo à família; o terreno vazio que, quando as condições adequadas se apresentam, abriga um empreendimento industrial, comercial ou dá espaço ao desenvolvimento de atividades agrícolas e pecuárias cumpre função social gerando empregos.
Com a inesperada eclosão da pandemia de covid-19, fomos todos mergulhados num mar de excepcionalidades. A concessão de liminares para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo foi congelada. Era uma questão humanitária e muitos proprietários – boa parte dependentes da renda do aluguel para sobreviver – tiveram de absorvê-la.
A decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, a qual suspendeu, inicialmente por seis meses, em junho de 2021, ordens de remoção e despejos de áreas coletivas habitadas antes da pandemia. No fim de 2021, a proibição de despejos foi prorrogada até 31 de março de 2022. Depois, numa terceira decisão, o prazo se estendeu até 31 de junho, e, por fim, o mesmo se manteve até 31 de outubro deste ano, quando, graças ao avanço vacinal, a pandemia foi superada e a vida recuperou condições de normalidade.
Esperava-se que essa normalidade também alcançasse o pleno exercício do constitucional direito de propriedade. Porém, não é bem assim. Em 31/10/2022, em atendimento a novo pedido de prorrogação formulado por partidos políticos e movimentos sociais, o STF adotou uma “medida de transição” para atenuar impactos habitacionais e humanitários em casos de desocupações coletivas.
Conforme publicado no portal do STF, os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais devem instalar, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que elaborem estratégia para retomar decisões de reintegração de posse suspensas, de maneira gradual e escalonada. Caberá a essas comissões a realização de inspeções judiciais e audiências de mediação, mesmo em locais nos quais já haja decisões que determinem despejos. Não é difícil de concluir que o tempo para deliberação será longo, com o que o direito de quem tem direito fica lançado à sorte – ou ao azar.
Felizmente, a decisão não se aplica às ações de despejo de locações individuais reguladas em contrato. Porém, há clara diferenciação entre os direitos destes e os de proprietários de áreas invadidas, cujo contrato é uma escritura registrada.
Valoriza-se, é claro, o viés humanitário da decisão. Porém, a questão das pessoas em situação de rua não se resolve em cima da propriedade privada. Esse drama social exige ações ancoradas, principalmente, na adoção de políticas públicas, em âmbitos municipal, estadual e federal, que assegurem a produção de habitações de interesse social.
Não é desestruturando todo o arcabouço jurídico do direito de propriedade existente que conseguiremos avançar no difícil e urgente combate ao déficit habitacional. Pelo futuro desta nação, o direito de propriedade não pode ser relativizado.